terça-feira, 29 de novembro de 2011

Mário Lago das Alagoas

Edberto Ticianeli
 
A histórica Viçosa, em Alagoas, vivia dias agitados em 1971. A cidade recebia a equipe que filmava São Bernardo, produção cinematográfica baseada no livro homônimo do alagoano Graciliano Ramos.

Numa noite quente, um dos atores sai a perambular pelas ruas da cidade e é atraído pelo som de um cavaquinho. Foi assim que o advogado, poeta, radialista, letrista e ator Mário Lago descobriu o Trovador Berrante, local de poucos negócios e muitas farras comandadas por seu proprietário, o legendário Zé do Cavaquinho.

Como boêmio atrai boêmio na proporção direta do tamanho da farra, Mário Lago e Zé do Cavaquinho foram ficando amigos de mesa de bar – uma das amizades mais sólidas entre as que existem por ai. Conversa vai, conversa vem, e Mário Lago não demorou a ser apresentado à obra de outro boêmio, Chico Nunes, o Rouxinol da Palmeira.

Como bom conhecedor da cultura popular, Lago percebeu que ali tinha uma fonte inesgotável da tradição oral, que guardava jóias do improviso de um dos maiores poetas das Alagoas. Assim surgiu a pesquisa e, posteriormente, o livro Chico Nunes das Alagoas.

Lançado comercialmente em 1975 pela Editora Civilização Brasileira, com grande sucesso, o livro recebeu crítica elogiosa de Luiz da Câmara Cascudo e de Artur da Távola. Hoje é uma raridade encontrar um exemplar para venda.

A obra, na sua última página, traz uma relação de pessoas a quem o autor agradece, referindo-se a elas como “à turma do mutirão”. Entre elas estão dois viçosenses ilustres: José Aloísio Vilela e Théo Brandão, dois dos maiores estudiosos da cultura nordestina.

Essa informação inevitavelmente provoca uma indagação: por que Chico Nunes não foi estudado por José Aloísio Vilela e Théo Brandão, viçosenses e conhecedores do poeta. A questão merece um estudo sério e pode concluir que em muitas pesquisas a escolha dos objetos obedece a critérios ideológicos. Só para atiçar a curiosidade de quem queira se aprofundar no assunto, vale lembrar que Mário Lago tinha forte ligação com o Partido Comunista.

A pista para entender porque foi um carioca que descobriu o valor da obra de Chico Nunes, talvez esteja na vida de boêmio do poeta, sem apego ao dinheiro, à família ou ao poder. Autoridade para ele era mote para uma glosa.
Chico Nunes

Nos anos 20, o governador Costa Rego visitava Palmeira dos Índios e cobrou do prefeito a presença de Chico Nunes. Queria conhecer o famoso glosador. O que Costa Rego não sabia é que o poeta estava revoltado com a medida do governo que proibia a jogatina nos bordéis, onde ele ganhava uns trocados.

Na frente das autoridades, Chico Nunes sapecou:

Existe um governador
Que se chama Costa Rego,
Que tirou o meu emprego
Porque o jogo acabou,
Isso me contrariou,
Mas o destino assim quis,
A sorte me contradiz,
Eu fiquei desmantelado...
Largue de ser desgraçado,
Seu Costa Rego infeliz.

Graças a Mário Lago e a sua sensibilidade para com a cultura popular, essa e muitas outras obras primas estão registradas no Chico Nunes das Alagoas.

domingo, 27 de novembro de 2011

Futebol: o espetáculo das ingratidões

Edberto Ticianeli
 
A televisão mostrou neste sábado (26/11) a épica batalha naval – embaixo de muita chuva – entre o time do Sport e o do Vila Nova, lá em Goiânia. Jogo que decidia a ascensão do Sport para a Série A do futebol brasileiro. Em Maceió, na mesma hora, o CRB jogava contra o Joinville a primeira partida para saber quem será o campeão da Série C. Uma partida mais tranquila, já que os dois times já estavam classificados para a Série B do próximo ano.

Os dois tradicionais times nordestinos conseguiram os seus objetivos e suas torcidas estão alegres com o feito dos jogadores, que são tratados como heróis. Tudo é festa e sentimento de gratidão. Dá para imaginar, por exemplo, o tamanho da recepção que a torcida pernambucana oferecerá aos leões da Ilha. O torcedor do CRB já vem comemorando o acesso à Série B desde a semana passada.

Mas, com tanta festa, onde está a ingratidão anunciada no título? Está na cabeça dos torcedores e cartolas. Não há um deles que já não esteja pensando no campeonato do próximo ano e no time que deverá ser montado para um certame mais difícil. Todos são gratos aos jogadores vitoriosos, mas sabem que a maioria deles não está à altura das novas exigências e terão que ser dispensados.

É a cruel lógica do esporte competitivo, arena dos melhores. Imagine os técnicos e cartolas nas preleções antes dos jogos, motivando os atletas para se superarem pelo clube. O apelo é quase sempre no sentido de fortalecer o espírito de grupo, de equipe: um por todos e todos por um. E lá vão eles para o campo de jogo dispostos a darem o melhor pelo clube. Contraditoriamente, também sabem que, se conseguirem os seus objetivos, terão poucas chances de continuarem no time e usufruírem da glória que é disputar o campeonato brasileiro numa Série superior.

Poderia ser diferente? Os estudiosos dos esportes identificam que o caráter competitivo sempre estará presente, mesmo quando há cooperação. Entretanto, reconhecem que o aspecto opressor, de uma sociedade que cobra êxito e somente valoriza a vitória, tem ofuscado as características lúdicas do esporte, que priorizam o prazer e a festa: a prática do esporte para se sentir bem.

É um problema complexo, mas que merece a atenção de quem se preocupa com o esporte e o seu papel integrador na sociedade. Uma coisa é certa: enquanto o futebol brasileiro for tratado como produto para a televisão, o seu aspecto de espetáculo competitivo predominará. Os campeonatos de futebol não obedecem a nenhuma política pública que fortaleçam os clubes, principalmente nas regiões mais pobres do país. Cartolas e redes de televisão são quem escolhem os clubes que vão crescer e os que vão desaparecer. Em Alagoas, por exemplo, já é maior o número de torcedores que vestem as camisas de times cariocas e paulistas. Mas vai melhorar. A bola está com o ASA e o CRB.

sábado, 26 de novembro de 2011

A batalha da Rua Santo Antônio

Edberto Ticianeli
Gilberto Soares Pinto e a casa na Rua Santo Antônio

Gilberto Soares Pinto era comunista e ateu. Condição que jamais deveria ser contestada por alguém que não estivesse disposto a entrar numa boa briga. Meu pai fazia questão de declarar as suas convicções políticas e religiosas para todo o populoso bairro da Ponta Grossa, onde fomos morar em 1966. Os vizinhos evangélicos bem que tentaram convertê-lo. Sem resultados. Aliás, o efeito foi contrário: alguns quase que se filiaram ao Partido Comunista Brasileiro, o Partidão.

Após o golpe militar de 1964, quando esteve preso e perdeu todos os livros do pequeno sebo da Rua 2 de Dezembro, o velho comunista montou uma lanchonete popular na esquina do quarteirão onde ficava o Cine Lux. Era um prédio antigo com sete portas estreitas e altas, que também abrigava precariamente a família. Além dos negócios, essa esquina também funcionava como um ponto de confluência de aposentados e militantes de esquerda. Era ali que Gilberto pregava os seus ideais libertários, mesmo sendo vigiado pelos agentes da polícia política.

Nesse período inicial da ditadura, ainda aconteciam manifestações da sociedade civil em apoio aos militares e contra os comunistas. Eram comuns manifestações como as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, organizada pelos setores mais conservadores da classe média. Uma das mais lembradas organizações desse segmento foi a Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma organização de base católica, extremamente conservadora. Fundada em 1960 por Plínio Correia de Oliveira, era motivada por um discurso contra a desordem e por um estranho fanatismo religioso, que envolvia até a mãe do seu fundador.

As atividades da TFP só eram conhecidas em Alagoas graças aos meios de comunicação. Por isso que a presença deles em Maceió, mas precisamente na Ponta Grossa, chamou a atenção de todos.

Não passava das 10 horas da manhã, quando as pancadas lentas e ritmadas em um bombo foram ouvidas na Rua Santo Antônio. Era um cortejo que tinha à frente altos estandartes, em cor de vinho, empunhados por indivíduos com a cabeça raspada e vestindo uma espécie de batina. Iam de porta em porta estendendo uma sacola e pedindo dinheiro.

Alguns vizinhos, mais provocadores, vieram correndo avisar ao meu pai que os esquisitos carecas estavam pedindo dinheiro para combater o comunismo. Um gozador chegou a desafiar:

–– Eita, “seu” Gilberto! Quero ver se o senhor é comunista agora!

O velho foi até a porta. Olhou na direção da passeata de carecas e tratou de montar a recepção. Separou entre os pedaços de madeira que serviam de tramelas para as portas, um que ele dizia ser especial.

–– Esse é de coração-de-negro, não quebra nunca!

Mandou que nos afastássemos um pouco, postou-se na porta com os braços para trás segurando o improvisado tacape, e ficou à espera. A torcida em volta da porta já era grande e os desafios provocativos mais agudos.

–– Esse velho não vai ter coragem de dizer que é comunista. Ele está com medo.

O jovem militante da TFP se aproximou, estranhando o grupo que se formava em torno daquele homem sem camisa.

–– Bom dia, senhor! Estamos pedindo a sua ajuda para acabar com os comunistas no Brasil. Qualquer contribuição será bem vinda.

–– Quer dizer, meu filho, que vocês vão acabar com os comunistas? –– perguntou Gilberto, mesmo tendo ouvido tudo.

–– Isso mesmo. Vamos acabar com essa praga vermelha –– reafirmou o desavisado jovem.

–– Então, como eu sou comunista e devo me defender, tenho o direito de acabar com quem quer acabar comigo!

A primeira cacetada por muito pouco não acertou cabeça: atingiu o ombro, provocando um grito de dor na vítima. Como resultado da pancada, a sacola com dinheiro caiu no chão e foi rapidamente apropriada pela turba. O fanático militante da TFP, percebendo que seria atingido de novo, correu para se proteger entre os seus correligionários. Mas a perseguição continuou, agora estendida para todos. Houve correria e alguma tentativa de reação dos que portavam os estandartes. Sem sucesso.  Não eram páreo para o poderoso pedaço de coração-de-negro.

Quando o tumulto já estava fora de controle, com os militantes de cabeça raspada espalhados e machucados, apareceu a turma do deixa-disso e conseguiu acalmar o intrépido e vitorioso combatente. A TFP se recompôs mais adiante, na porta do Cine Lux, e seguiu derrotada no único enfrentamento concreto com o comunismo em Alagoas.

Ninguém mais, no velho bairro da Ponta Grossa, voltou a duvidar que Gilberto Soares Pinto era comunista mesmo, e dos brabos.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Ditadura argentina copiou método nazista para roubar bebês, diz historiador


Calcula-se que cerca de 500 bebês foram roubados pelo regime militar no país

A ditadura na Argentina (1976 - 1983) utilizou um método idealizado pelo nazismo para o roubo de bebês e a substituição de sua identidade, de acordo com o historiador e escritor Carlos De Nápoli. Segundo ele, o programa de roubo de bebês foi executado pelo Escritório Principal para a Raça e o Reassentamento (RUSHA).

Organizações humanitárias argentinas calculam que cerca de 500 bebês foram roubados pelo regime militar nos denominados "anos de chumbo".

Essa organização tinha, entre outros objetivos, o "de assassinar todas as minorias consideradas impuras e indesejáveis". O escritor antecipou que nos próximos dias pedirá a juízes argentinos que cuidam de processos sobre roubo de bebês durante a ditadura para que incorporem como antecedente um julgamento realizado em Nuremberg em 1949, que tratou deste método.

De Nápoli, autor de vários livros sobre o nazismo, disse que o processo judicial em Nuremberg, que é pouco conhecido, foi introduzido pelos Estados Unidos contra a RUSHA. "Nesse julgamento foram revelados os atos criminosos desta organização e foram descobertos com riqueza de detalhes os métodos e procedimentos usados para suprimir a identidade real dos bebês, especialmente nos países do leste europeu, e substituí-la por uma nova", explicou.

O diretor da RUSHA foi o argentino Ricardo Walther Darré, um general que entrou para a história como ministro de Alimentação de Adolf Hitler e depois ministro da Agricultura da Prússia, mas não por essa atividade secreta, comentou o historiador.

Mengele

De Nápoli apresentará no Museu do Holocausto de Buenos Aires nesta quarta-feira (23/11) um documentário sobre a vida do médico e criminoso nazista Joseph Mengele na Argentina, feito com a colaboração da History Channel e Anima Films. O filme revela detalhes inéditos da vida na Argentina do chamado "anjo da morte", responsável por desumanos experimentos no campo de concentração de Auschwitz, que escapou da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e encontrou refúgio no país sul-americano.

Mengele chegou à Argentina em 1949 com identidade falsa, embora anos mais tarde tenha conseguido que a Polícia Federal do país lhe expedisse um documento com o nome de José Mengele. De Nápoli entregará ao Museu do Holocausto uma cópia do estatuto societário da Fadrofarm SRL, laboratório que Mengele fundou na Argentina e no qual figurava como "sócio oculto".

"No estatuto figura quem eram os sócios, os gerentes, os advogados e os escrivães do laboratório, e também o seu capital inicial, que alcançava US$ 1 milhão, número enorme para a época", disse. "É o primeiro documento que o expõe da cabeça aos pés", disse o escritor, que também doou uma cópia do expediente completo do segundo casamento de Mengele na cidade uruguaia de Nueva Helvecia.

"Ele se casou com sua cunhada, Marta María Hill, cujo marido, irmão de Mengele, tinha falecido anos antes. Isto provocou a ira de sua primeira esposa, Irene Schönbein, que a partir dali começou a tornar pública a atuação do criminoso em diferentes tribunais alemães", comentou.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sociedade civil, ONGs e esfera pública

Emir Sader, na Carta Maior
 
A grande virada na obra de Marx vem da descoberta de que as relações de classe cruzam o conjunto da sociedade capitalista. Depois de operar com as categorias herdadas do liberalismo, como Estado/sociedade civil, ele fez o que chamou de “anatomia da sociedade civil” e encontrou la dentro as classes e a luta de classes.

Nas últimas décadas, conforme a luta democrática voltou a ter peso – depois de subestimada, em geral, pela esquerda – a categoria de sociedade civil reapareceu. Como está na sua própria natureza, ela se opõe ao Estado e desloca as relações de classe, como um retorno ao liberalismo clássico, de forma paralela à volta do liberalismo no plano econômico – com o nome de neoliberalismo.

No marco dessa categoria passaram a abrigar-se organizações de distinto tipo, desde aquelas estreitamente ligadas aos movimentos sociais e a outras formas de resistência à ditadura militar, até outras, muito mais ambíguas. Esse amálgama é possível porque a categoria de sociedade civil se presta a isso. Ela significaria “o que não é Estado”, permitindo que se abriguem nesse amplo guarda-chuvas as associações do agronegócio e as dos trabalhadores rurais, as dos proprietários de bancos e as dos bancários, a dos donos de escolas privadas e as dos estudantes, além de outras expressões da “sociedade civil” ainda mais problemáticas, como os narcotraficantes, as milícias, etc., todas pertencentes à “sociedade civil”.

Todas elas tem em comum falta de transparência, porque se autoproclamam representantes da sociedade civil, mas a eleição dos seus dirigentes, as origens dos fundos, a forma de tomada de decisões, tendem a não ser transparentes. Basta ver como se pode facilmente fundar uma ou varias ONGs e se candidatar a receber recursos públicos ou simplesmente acobertar negócios escusos.

Além da ambiguidade – para não dizer má fé - da definição de “não governamentais”. Essa posição antigovernamental se soma facilmente às posições neoliberais, não tem fronteiras em relação a “parcerias” com grandes empresas privadas e suas fundações, embora definam limites frontais contra o Estado.

Com a reaparição do liberalismo, ressurgiu com força sua visão da democracia e do Estado. A democracia viria da delimitação e do controle externo da ação do Estado, que seria, por definição, o inimigo central da democracia, que teria nos indivíduos, congregados na sociedade civil, seus elementos constitutivos.

Do que se trataria seria de controlar o Estado pela sociedade civil, para garantir a democracia. Quanto mais Estado, menos democracia, o que o neoliberalismo teorizou como Estado mínimo. Limitar o Estado, para que o mercado assuma a centralidade. Na teoria, esse papel seria o da sociedade civil, que mal recobre, na realidade, o mercado.

Essa concepção negativa do Estado abandona o caminho da democratização do Estado. É a concepção liberal, reatualizada pela ideia de controle do Estado pela sociedade civil – representada por ONGs e outras associações que pretendem assumir essa representação.

A política que mais avançou na construção da democracia no Brasil foi a do orçamento participativo, que fortaleceu a esfera pública no interior do próprio Estado, em detrimento dos interesses mercantis. A luta democrática não é externa ao Estado, mas o cruza. No Estado estão representados interesses distintos, até mesmo contraditórios, os mesmos que cruzam a sociedade.

A separação entre os dois, de caráter liberal, perde esse aspecto, fundamental, da realidade – toda ela cruzada pelas determinações sociais. A sociedade civil é uma ficção, assim como o Estado que se contrapõe a ela, todos sem determinações de classe.

Democratizar é desmercantilizar, é afirmar a esfera pública em detrimento da esfera mercantil. É fortalecer o papel dos cidadãos em detrimento dos consumidores. É levar a democratização para o próprio seio do Estado.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Emboladas

Resultado de um mapeamento cultural do Brasil realizado por Aluízio Falcão e Marcus Pereira no início dos anos de 1970, foram lançados, já em 1975, quatro coleções de discos com as gravações das principais manifestações de cada região do país. Segundo Aluízio Falcão, “todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes”.

Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo, os de Renato Carneiro Campos sobre bandas de pífanos e cocos, de Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi, o de Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas, e agora publicamos o último texto, o de Euricledes Formiga sobre as emboladas.

Os textos foram publicados aqui pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira.  

Emboladas

EURÍCLEDES FORMIGA

TODA FEIRA NORDESTINA é uma colorida e pitoresca exposição, heterogênea em seus elementos de sabor local, principalmente nas mostras abertas de seu artesanato de cerâmica, cestos, flandres, rendas etc., rudes e maravilhosos resultados de talento dos artistas do sertão, cangaceiros, beatos e cantadores.

Tornou-se famosa a feira de Caruaru, ainda mais depois do baião divulgado por Luiz Gonzaga, que não omite os mínimos detalhes daquele espetáculo folclórico do interior pernambucano.

Todavia, uma das atrações mais fascinantes da feira do Nordeste é, sem dúvida, o encontro de dois emboladores, empunhando o pandeiro ou o ganzá (instrumentos de flandre, cheio de caroços de chumbo), desfiando suas rimas com a rapidez de um raio ao calor do desafio, numa autêntica justa sonora, duelo de rapsodos cablocos que aumenta de entusiasmo quanto mais aguçados são os toques de provocação partidos de cada um dos contendores.

A paga é feita pelos circunstantes, que são elogiados ou satirizados conforme a reação ante os apelos feitos pelo embolador, quase sempre estendendo o pandeiro emborcado em evidente cobrança aos espectadores.

O gênero é simples e independente de qualquer composição preestabelecida quanto ao número e disposição dos versos. Há apenas um estribilho, que é repetido com intervalo maior ou menor por um dos cantadores, enquanto o outro improvisa. O metro é setissilábico e a redondilha maior; aliás, o mais comum mesmo entre os cantadores de viola, espetáculo à parte, que já obedece a modalidades diversas e que não é assunto no momento.

Já se disse que o povo de língua portuguesa fala habitualmente em redondilha maior:

– Senhor doutor delegado,
Vim aqui prá lhe dizer
que o meu vizinho do lado...

e vai por aí afora, falante e rimador.

Entre os mais conhecidos emboladores, merece citação especial o Tira-Teima, mulato alagoano, dono da extraordinária agilidade mental, hoje radicado em Brasília. Costuma denominar-se de serpente alagoana e afirma quando canta:

– Eu tenho tanto repente
que as vez me faço doente
com preguiça de cantar

Declara com segurança (e todo repentista que se preza faz questão de ter realizado tal proeza) que, certa ocasião, enfrentou o diabo numa peleja, o qual lhe surgiu na forma de uma negra:

– ...num instante eu conheci
que aquela negra era o cão,
o pandeiro caiu da mão
e eu fiz pelo-sinal

Apesar de apregoar seu indiscutível valor, com a empáfia natural dos grandes emboladores, não esquece um desafio que teve com um tal cego João Galdino, que o silenciou com um repente magistral:

– Eu sou João Galdino cego
e aonde eu bater um prego
quem vê não pode arrancar.

Os estribilhos da embolada são singelos, harmoniosos. Entre outros, costumam usar os seguintes:

– Lá vem o touro, ô iaiá,
com as pontas de ouro
cavando areia no má

– Sabiá da mata.
adeus, sabiá...
voou, avoou,
adeus, sabiá.
O dia vinha raiando,
via o sabiá cantando
nos pés de Nosso Senhor.

– A sulanda não me deu,
Ô sulanda não me dá
Ô sulandá.

Não há, porém, necessidade de ir ao Nordeste para assistir desafio de embolada. Na Guanabara, na feira de São Cristóvão, é comum aparecer uma dupla de repentistas do gênero; também em São Paulo, nas imediações do largo da Concórdia, diariamente se encontram improvisadores, com seu pandeiro e seu ganzá, os alagoanos Januário e Guriatã de Coqueiro.

É justo lembrar aqui que a embolada tornou famoso, nos meios radiofônicos, o pernambucano Manuelzinho Araújo, hoje artista plástico, que trocou o ganzá pelo pincel, sem contudo perder o sabor primitivo do seu talento. Deve-se a ele a divulgação dessa modalidade de cantoria popular nas camadas fora da ambiência sertaneja.

Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997

domingo, 20 de novembro de 2011

Moreno Brandão e o Quilombo dos Palmares

O texto abaixo é parte do livro História de Alagoas, de Moreno Brandão. Lançado em 1909, reproduz a visão que o historiador pãodeaçucarense tinha sobre a experiência dos Quilombos dos Palmares e sobre os negros rebelados. Percebe-se claramente, em algumas expressões, a carga preconceituosa que tem a história quando contada pelos vencedores.

Como hoje, 20 de novembro, celebramos mais um Dia Nacional da Consciência Negra, publico o texto como testemunho da saga de lutas que a raça negra teve e tem que enfrentar para contar a sua verdadeira história.

No livro, os negros são tratados como incorporados à sociedade brasileira, quando na realidade foram parte fundadora desse povo novo. Moreno Brandão ainda se refere à religião adotada nos quilombos como um misto do monoteísmo católico e de “aberrações fetichistas dos africanos”. Lembro que o texto é de 1909.

O Quilombo dos Palmares

Ao Marquez de Monte-Bello succedera na administração da capitania de Pernambuco, a 13 de Junho de 1696, Caetano de Mello Castro, em cujo governo effectuou-se a destruição do famoso Quilombo dos Palmares.

Fundado a cerca de 64 annos, na vigencia das invasões hollandezas, o quilombo estava localisado n'um bello logar, ensombrado de virente palmeiral, na encosta oriental das serras da Barriga e da Jussára.

Distava 120 kilometros do littoral e era banhado pelas aguas paludosas do Mundahú e do Jundiá.

O quilombo palmarino offerecia um esboço de organisação social, que, embora de caracter rudimentar, não deixava de fazer perceber os lineamentos de um futuro estado que não ficava em grande distancia d'aquelles Estados constituidos sob os modelos da civilisação europea. Dez ou doze aldeias, denominadas quilombos ou mucambos, eram dirigidas por sub-chefes que tinham a denominação de ambas, governados supremamente por um chefe superior a todos e chamado Zumbi, que residia na séde desse fac-simile de confederação.

O nucleo do famoso quilombo foi constituido por uns 40 negros fugidos ao predomínio sempre tyranno do senhor. Nota um provecto historiador que foi esse agrupamento em quilombos o segundo estadio das formas de protesto adoptadas pelos negros trazidos ao Brazil.

A principio, devorados pelo banzo incuravel, deixavam-se morrer, appellando para as multiplas modalidades do suicidio, em seguida reagiram com um vigor homerico, e depois encorporaram-se à sociedade brazileira de que foram um prestante auxilio.

Por juxtaposição de novos negros, muitos d'elles já libertos, foi crescendo a republica dos Palmares e á proporção que se expandia procurava garantir-se contra a mais do que provavel aggressão dos brancos.

Contava tambem o quilombo dos Palmares, alguns moradores pardos e mestiços que tangidos pela invasão hollandeza, se embrenhavam nos sertões. Ascendendo ao vultuoso numero de mais de 20.000 homens fortificaram-se, estabelecendo em sua republica minuscula uma cidadella circumvallada de trez estacadas de páu a pique, defendidas cada uma por 200 homens, que eram elevados a maior numero quando se receiava a possibilidade de um assalto que mesmo os proprios hollandezes infructiferamente deram.

Da parte exterior da cidadella levantavam-se as roças e os pomares.

Os moradores das paragens propinquas, por essa especie de complicidade que o mêdo impõe, estabeleceram com os palmarinos um tacito modus vivendi em virtude do qual mutuavam serviços e se davam a transacções reciprocas. Como um traço fundamental da unidade de vistas que os vinculava seguiam todos a mesma religião, mixto do monotheismo catholico, e das aberrações fetichistas dos africanos. Tinham leis repressivas do roubo, do homicidio e do adulterio.

Tornando a iniciativa do ataque aos insolentes confederados, os homens nobres do governo da vila de Alagôas, bem como o povo, enviaram um mensageiro, o capitão João da Fonseca, ao Governador da Capitania, Bernardo de Miranda Henriques, pedindo-lhe para mandar bater esses quilombos.

Coube, porem, a Caetano de Mello e Castro, prover a sua extincção.

O Governador Geral D. João de Lencastro com quem se entendeu, lhe mandou 1.000 soldados paulistas sob a chefia de Jorge Velho que exercia a profissão de capitão de matto.

Fez este uma primeira tentativa, que ficou sem proficuidade e resolveu-se então a, deixando de parte a estulta vaidade de ser elle o unico vencedor da Troya negra, sollicitar auxilios.

De Porto-Calvo, onde se havia refugiado, mandou aviso ao Governador de Pernambuco, pedindo reforços.

Ao nucleo de forças paulistas e mineiras reuniram-se contingentes de Olinda, Recife e lugares circumvisinhos, em numero de 3.000 praças,Penêdo, Alagôas, S. Miguel, S. Luzia do Norte, bem como o alcaide-mór Christovão Lins de Vasconcellos, capitão Rodrigo de Barros Pimentel, mestre de campo Cristovão da Rocha Barbosa, reuniram forças que orçavam por 7.000 soldados aos quaes tocou dirigir um dos typos mais singulares e suggestivos de nossa historia colonial, Bernardo Vieira de Mello, que de sua fazenda denominada Pindoba, situada talvez em Alagôas. troucera grande numero de voluntarios, e no posto de sargento-mór, Sebastião Dias. Avançaram em seguida para os Palmares, que puzeram em cerco, ferindo-se um combate sanguinolento e medonho, em que a resistencia dos quilombos fez vacillar o animo dos assaltantes.

Officiou então Bernardo Vieira de Mello ao Governador da Capitania de Pernambuco pedindo reforços em soldados e artilharia, que não vieram, porque chegara a Pernambuco a noticia de rendição dos Palmares.

Tinham já decorrido dois mezes depois do estabelecimento do cerco á confederação palmarina, quando os negros alli acoutados, avistando ao longe muito gado e cargas que vinham em adjuctorio aos assaltantes, sentiram esmorecer-lhes a coragem que de todo falleceu, quando os homens commandados por Bernardo Vieira de Mello começaram a escalar as trincheiras.

O Zumbi e o numeroso cortejo de seus seguidores suicidaram-se, atirando-se pelos esbarrondadeiros da serra da Barriga, votando-se assim em holocausto á liberdade.

Os sobreviventes foram reescravisados, embora muitos d'elles fossem homens livres. Os vencedores dos legendarios palmarinos ficaram cumulados de favores, cabendo-lhes as terras dos quilombolas em sesmaria, que tambem tocou a Domingos Jorge Velho.

Fez este ultimo erigir a igreja que foi depois matriz da freguezia da Atalaia.

sábado, 19 de novembro de 2011

Ciranda: dança popular

Resultado de um mapeamento cultural do Brasil realizado por Aluízio Falcão e Marcus Pereira no início dos anos de 1970, foram lançados, já em 1975, quatro coleções de discos com as gravações das principais manifestações de cada região do país. Segundo Aluízio Falcão, “todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes”.

Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo, os de Renato Carneiro Campos sobre bandas de pífanos e cocos, de Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi, e agora publicamos o de Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas.

Pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira, vamos reproduzir todos eles em outras postagens.  

O próximo e último será o de Euricledes Formiga sobre as emboladas.

Ciranda: dança popular

PADRE JAIME C. DINIZ

ALGUNS PRETENDEM que a palavra ciranda seja de proveniência espanhola. Seria zaranda – nome de um instrumento de peneirar farinha – a sua origem. Leite de Vasconcelos, porém, andou cantando noutro terreiro, quando filiou a palavra ao fato de as mulheres trabalharem juntas em serões, grafando, por esta razão, seranda, e não ciranda.

Pensava-se que a dança da ciranda, no Brasil, estava confinada unicamente ao mundo infantil. Mário de Andrade o asseverou em memória, para o Congresso Internacional de Arte Popular, de Praga, ao escrever que no Brasil "a ciranda é roda exclusivamente infantil". Renato Almeida, por sua vez, afirmava que o referido folguedo "se tornou apenas roda infantil". Entretanto, estudo editado em Recife, no ano de 1960, veio revelar uma ciranda tocada, cantada e bailada por adultos de ambos os sexos, numa vasta área de Pernambuco. E já em 1961, a ciranda do mestre Baracho se exibia em festa popular para os recifenses, que até então a desconheciam.

Ao lado das cirandinhas infantis cantadas e dançadas em todo o Brasil, sobrevive no Nordeste a autêntica ciranda. E sobrevive com acentuadas características diferenciais, a começar pela participação dos cirandeiros – os que participam cantando ou dançando, adultos por regra. Difere das cirandinhas pelo repertório variadíssimo no que tange às melodias ou aos textos poéticos, nunca se ouvindo qualquer variante ou reprodução de "ciranda, cirandinha / vamos todos cirandar", pela presença obrigatória de um instrumental no qual o bombo ou zabumba é peça que não deve faltar, instrumental que sustenta o canto da roda ondulante dos cirandeiros, homens e mulheres se alternando, de mãos dadas, não importando qual seja a condição social; difere, também, pelo local de sua execução, que é o terreiro na ponta-de-rua semi-escura ou em lugares mais afastados, sempre ao ar livre. Há ainda, para distingui-la das rodas infantis, a presença do mestre cirandeiro, a quem cabe o ofício de tirar as cirandas (cantigas), improvisar versos, presidir a folgança.

Ao soar forte do bombo, e mais um que outro instrumento, os cirandeiros vão sendo atraídos. Dão-se as mãos, às vezes os braços, espontaneamente, e já estão girando. De meias-luas soltas no terreiro, uma grande roda vai surgindo, num balanço de onda, contagiante. Tão contagiante que faz inveja ao frevo. E todo mundo dança, pois a ciranda não é bailado fechado de um grupo, de alguns pares. É de todos, indistintamente. Assim é que senhoras da sociedade, por vezes de contrato firmado com as colunas sociais dos jornais pernambucanos, podem ser vistas de mãos dadas a mulatos operários descalços, de camisa suada, políticos e professores universitários, ao lado de anônimas empregadas domésticas.

No centro da roda, em cirandas não desvirtuadas do seu habitat, um mastro, um candeeiro (ou um carbureto), o mestre e os seus músicos. Os músicos são os tocadores de bombo, de caixa (sempre atuante nos folguedos populares do Brasil), de ganzá, e de um ou outro instrumento de sopro, como saxofone, trombone, clarineta.

A noite se torna pequena para a animação de uma ciranda. Uma vez iniciada, não se sabe quando termina. Pela madrugada adentro ainda se desfia o rosário das melodias, cantando coisas do mar, coisas da terra, coisas do amor. Rico material que deve ser colhido enquanto é cedo. É o que está fazendo esse admirável Quinteto Violado, ainda tão novo, e já tão forte nos propósitos e nas suas produções, transpondo texto e melodias originais da ciranda para um plano sonoro e atraente, principalmente pela presença da viola nordestina.

Em ambiente no qual se realiza uma ciranda que se preza, nunca falta cachaça, a água que o passarinho não bebe... O dono da ciranda – ou dona – (quem em geral a promove) é algum proprietário de restaurante, bar ou simples boteco, onde o mestre cirandeiro, sem falar nos demais participantes, sobretudo os músicos, pode encher a cara, se desejar... Quanto mais quente o mestre, mais inspirado para os improvisos, mais concentrado em sua arte, mais sua voz ressoa forte e resistente.

Já nos ambientes mais sofisticados do Recife (Pátio de São Pedro / boates, salões de dança, colégios e até residências) nos quais, hoje, também chega a boa ciranda, a cachaça pura e saborosa se desvirginaliza transmudando-se em batida, batida de limão, batida de pitanga, batida de maracujá.

Não há estações próprias para a ciranda. Dança-se durante todo o ano. Aos sábados e domingos preferencialmente, quando se procura esquecer tanta labuta, tanto pão suado, tantas preocupações. Os versinhos colhidos já há alguns anos, falam a respeito: "Carnavá é todo ano / E ciranda, quarqué um dia".

Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Os Belos e Belo Monte


Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo - Terra Magazine
Pois estimados leitores cá estamos, dependendo de onde estamos. Se estivermos em São Paulo, por exemplo, podemos aproveitar das maravilhas da Balada Literária, a criação do Marcelino Freire para mostrar que evento de literatura pode, sim, pode, ser muito legal, ter altíssima qualidade, e, ora vejam, ser grátis. Basta querer que todo mundo que queira entrar entre, não é mesmo?
E entre um momento e outro da Balada cá estava eu, ciscando no Tuiti e pronto, fui atingido por um vídeo gravado por muitos atores globais baixando o cacete na hidrelétrica de Belo Monte, garantindo que ela é o mal sobre a Terra, o exu, o capeta, o diabo em sua versão mais úmida, e eu me pergunto, como eles sabem de tudo isso? E mais, por que o vídeo deles é igual a um americano, dirigido pelo Spielberg para fazer os americanos tirarem a bunda do sofazão e irem votar?
Por que atores globais fizeram um vídeo contra? Eu não tenho nada contra atores globais, fora o sotaque e a mania de fazerem teatro comercial, mas não tenho nada a favor. Pra mim, são tão ignorantes em assuntos de represas no Pará como quase todo mundo com quem eu falei antes de escrever essa coluna, se bem que, admitamos, muito mais fotogênicos. Mas, mesmo sendo pra lá de mais bonitos e reconhecíveis do que eu ou o senhor aqui ao lado, eles falam tanta besteira quanto qualquer um, e isso me irrita. Energia eólica é mais limpa? Alguém já viu um parque eólico, que por demandar vento costuma ficar no litoral, onde também ficam as praias? Importante, necessário, talvez melhor, mas, limpo? Defina limpeza aí, seu global, porque eu talvez ache uma represa cheia de água no meio de uma floresta cheia de água algo mais natural do que cataventos altíssimos transformando por completo uma paisagem que antes era perfeita. Solar? Estimado espécime global, sua senhoria faz idéia da área necessária para produzir 100 megawatts de energia solar? Eu sei, e é um monte de área, que não vai servir para mais nada, montes de recursos, dinheiro pra caramba, e ainda temos os enormes custos de manutenção. Belo Monte são 11 mil megawatts, senhor ou senhora global. Faça as contas antes de vir ler texto dado por sei lá quem, e talvez eu realmente leve a sério o que dizem, o que o senhor ou senhora talvez mereçam, desde que trabalhem para isso.
Os bonitinhos dizem que Belo Monte vai criar um baita lago e afogar a floresta. Eu, feinho, fui estudar. O lago da represa vai ocupar uma área de 516 km2, me informa o Google. O mesmo Google me diz que o estado do Pará possui uma área de 1.247.689,515 km2. O que deve querer dizer que o lago a ser formado vai ocupar uma área equivalente a 1/2400 da área do estado do Pará, que por sua vez é um estado com 7 milhões de habitantes, com dois milhões deles morando em Belém e todos participando do Círio de Nazaré, pelo que vejo. Ou seja, uma represa vai alagar uma área de 1/2400, ou nada por cento, de um estado basicamente vazio e isso se torna um problema por que mesmo? Não dêem texto, provem. Do jeito que vocês falam, encenando, eu não tomo como sério o que é dito. A moça vem e diz "24 bilhões" e soa como o Dr. Evil falando "One billion dollars" com o dedinho na boca. Dona, diga aí qual é o PIB brasileiro em 2010, e quantos por cento do nosso PIB, a nossa riqueza nacional, a hidrelétrica vai custar, diluída por 50 anos? Vosmecê sabe? Ó aqui a minha boquinha enquanto ela diz, assim: D-U-V-I-D-O.
Leitores, me irrita, e muito, essa tentativa de fazer a minha cabeça por processos tão rudimentares. Se querem, mandem coisa melhor e terão toda a minha atenção. Isso aí é manipulação tola, boba, mesmo que muito bem intencionada. Isso tem cara de ONG que consegue apoio de um publicitário bonzinho e muita gente bacana e vamos lá, salvar as baleias do Xingu. Pois me irrita pra caramba, pelo desrespeito para comigo, que vivo no mundo real, não dos comerciais sejam eles do governo ou de ONGs. Eu não sou uma baleia, acho.
Eu vivo em uma sociedade industrial, que pode abrir mão de muitas coisas e do bom senso quase o tempo inteiro, mas não resiste a umas poucas horas sem energia. Vira gelo, sem gelo pro uísque. Vira fogo sem ar condicionado para resolver a vida na fornalha. Vira uma luta pelo pedaço de pão mais próximo, vira a impossibilidade de chegar até a nossa casa. Podemos ficar sem quase tudo, e eu poderia ficar muito bem sem axé, o Malafaia e a lasanha congelada, mas não podemos ficar sem energia. Podemos e devemos economizar energia. Podemos e devemos desenvolver energias renováveis, e o faremos. Podemos e devemos esquecer a maluquice de construir Angras 3, 4 o escambau, mas não o faremos. Angra 3 ou 4 são muito, muito piores do que qualquer Belo Monte e certamente piores do que Fukushima, especialmente se ficarem no Rio, que, digamos, não é o Japão.
Mas para chegarmos até as novas energias, precisamos de energia da que se produz agora e o resto é, infelizmente, poesia. Não a qualquer custo, mas a custos que valha a pena pagar. E essa avaliação tem que ser muito, mas muito racional e justa do que eu vejo nos youtubes que vêm e vão.
Se vamos escapar do fogo ou do gelo, é pela inteligência, como sempre foi e será. E desse debate, por tudo que eu vi, ela está longe, muito longe, muito mais longe do que o Pará, e muito menos inteligente do que precisa ser para ser.
Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Bumba-meu-boi

Resultado de um mapeamento cultural do Brasil realizado por Aluízio Falcão e Marcus Pereira no início dos anos de 1970, foram lançados, já em 1975, quatro coleções de discos com as gravações das principais manifestações de cada região do país. Segundo Aluízio Falcão, “todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes”.
Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo, os de Renato Carneiro Campos sobre bandas de pífanos e cocos, e agora publicamos o de Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi.
Pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira, vamos reproduzir todos eles, em outras postagens.  

Os próximos serão os de Euricledes Formiga sobre as emboladas e Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas.

Bumba-meu-boi

HERMILO BORBA FILHO

AUTO OU DRAMA pastoril ligado à forma de teatro hierático das festas de Natal e Reis, o Bumba-meu-boi é o mais puro dos espetáculos nordestinos, pois embora nele se notem algumas influências européias, sua estrutura, seus assuntos, seus tipos e a música são essencialmente brasileiros.

Parece que a expressão Bumba-meu-boi origina-se do estribilho cantado, quando o boi, figura principal do auto, dança: Ê! Bumba!, com pancadas do zabumba, o que equivaleria a dizer: Zabumba, meu boi, isto é, o zabumba está te acompanhando, boi. Esta engenhosa opinião, com outras palavras, foi emitida por Gustavo Barroso; mas se recorrermos a Pereira da Costa – Vocabulário pernambucano – verificaremos que a palavra bumba significa, na verdade, o bombo ou zabumba, mais exatamente tunda, bordoada, pancadaria velha e, aí, atingimos o seu significado mais essencial, o da pancadaria, porque a maior parte dos espetáculos populares resolve as suas cenas com pancadas.

A origem do bumba-meu-boi perde-se no passado. Não resta dúvida que se trata de uma aglutinação de reisados em torno do reisado principal, que teria como motivo a vida e a morte do boi. O reisado, ainda hoje, explora um único assunto proveniente do cancioneiro, do romanceiro, do anedotário de determinada região. No caso do nosso espetáculo, porém, eles se juntaram para a formação de cenas isoladas, que culminam com a apresentação do boi, mantendo uma linha muito tênue, a do Capitão, servido em suas peripécias por Mateus, Bastião e Arlequim; os diálogos – mistura de improvisação e tradicionalismo – assemelhando-se aos da velha comédia popular italiana; e as músicas, executadas por uma orquestra composta de zabumba, ganzá e pandeiro, ou zabumba, ganzá e reco-reco, ou ainda zabumba, triângulo e rabeca, provenientes das toadas de pastoril, dos reisados, das canções populares, das louvações, das loas, da música popular religiosa.

Tradicionalmente representado durante o Ciclo de Natal, hoje em dia exibindo-se até pelo Carnaval, o espetáculo toma várias designações, conforme a região: Boi-bumbá, no Amazonas; Bumba-meu-boi, e Bois de Reis, no Maranhão e Piauí; Bumba-me-boi, Reisado Cearense, Boi de Reis, Boi Surubi, no Ceará; Boi Calemba ou Calumba, Rei de Boi, Bumba-meu-boi, no Rio Grande do Norte; Bumba-meu-boi, Boi, Bumba de Reis, no Espírito Santo; Bumba-meu-boi e Reis de Boi, no estado do Rio e Guanabara; Boi de Mamão, no Paraná e em Santa Catarina; Bumba-meu-boi, Boi-bumbá e Boizinho, no Rio Grande do Sul.

É um espetáculo praticado em arena, com o público em pé formando a roda que se vai fechando em torno dos intérpretes, até que a Burrinha, o Mateus e mesmo o Boi façam que ela, às custas de correrias e bexigadas, se abra o bastante para a representação poder continuar. Demora normalmente oito horas, não tanto pelo desenvolvimento das cenas, mas sobretudo pela repetição de palavras e passos. Num espetáculo dessa natureza é espantoso como os intérpretes dançam, cantam e representam sem mostra de cansaço, tomando cachaça nas várias saídas de cena. No Boi misterioso do Formigão, no Recife, comandado pelo capitão Antonio Pereira há 68 anos, a máscara é elemento importante e os atores que não a usam lançam mão de maquilagem bem carregada, feita com carvão ou farinha de trigo, assemelhando-se à própria máscara e tem a função de utilizar menor número de intérpretes para o papel de vários personagens.

Os papéis femininos são desempenhados por homens vestidos de mulher à boa maneira dos espetáculos elisabeteanos, exceção feita para a Pastorinha, geralmente uma menina. Outro elemento feminino usado no espetáculo é a cantadeira, que se senta ao lado da orquestra entoando loas e toadas para chamar os personagens à cena. O dinheiro, como a cachaça, é outro elemento constante numa função. Cada ator faz a sua coleta, através de piadas, as mãos estendidas, criando uma representação à parte. O sistema da sorte, o qual consiste em colocar um lenço no ombro do espectador, que o devolve com uma cédula dentro, nem sempre funciona e, por isso, os atores assaltam o público de mil maneiras engenhosas e cômicas.

Os personagens do auto podem ser classificados em três categorias: humanos, animais e fantásticos. E nas noites do Recife o espetáculo se repete:

Cavalo-marinho
chega prá diante
faz uma mesura
a essa toda gente.
Cavalo-marinho
já pode chegá
que a dona da casa
mandou te chamá.

E na madrugada ouvem-se os últimos versos:

Levanta-te, boi,
vamo-no s'embora,
que é de madrugada,
o rompê da aurora.

Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997