quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Nobel de Obama e os 30 mil soldados



Sei que ainda é muito cedo para submeter o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a julgamentos. Os mestres da história nos ensinam que é preciso haver o devido distanciamento histórico para poder  enxergar o essencial. Isso é correto: ao estudarmos, por exemplo, a trajetória política de Getúlio Vargas, podemos encontrar, em um mesmo projeto político, ações de aspectos econômicos e sociais modernizantes convivendo com a brutal repressão policial às liberdades políticas.




No caso de Obama, um fato precipitou o seu julgamento: a sua escolha para receber o Prêmio Nobel da Paz. Desconfio que a honraria também deva ter aguçado o olhar crítico sobre o próprio prêmio Nobel. Pelo menos provocou a indignação de Fidel Castro, que rapidamente expôs a contraditória e “cínica” situação de Obama, que pendura no pescoço a medalha da paz enquanto envia 30 mil soldados para o Afeganistão.



A discussão subjacente é se Obama tem realmente poder político para se contrapor aos interesses imperiais do capitalismo do seu país, principalmente à bem armada indústria bélica. Por enquanto pode-se perceber que o discurso do presidente dos Estados Unidos e o Prêmio Nobel da Paz têm em comum o valor de peças publicitárias que reforçam a imagem de pacifista de Obama. Mas como o que conta mesmo é a política real, e como essa ainda está sendo avaliada por milhares de soldados enviados, vamos continuar acompanhando a situação com olhar de “peixeiro”: um olho no peixe e outro no gato.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Profissão de Risco

Um profissional trabalhava, na tarde de hoje (01/12), na antena da TV Gazeta. Consegui o flagrante a partir da janela do meu apartamento.


domingo, 25 de outubro de 2009

Evolução na abordagem ao eleitor

Em 18 de outubro de 1860, Tavares Bastos assim se dirigiu aos eleitores para conquistar votos:
"Meus caros comprovincianos. É com extrema satisfação que venho dirigir-vos estas poucas palavras. Apoiado pelo concurso valioso de amigos, cuja magnanimidade parece tanto maior quanto é mais elevada acima de mim a sua posição e a influência, eu venho hoje solicitar perante vós a hora de representar no Parlamento a nossa heróica província das Alagoas, pelo seu primeiro distrito eleitoral. O nome que ante vós comparece, o meu nome de família, vós o conheceis bastante. Desvanece­me saber que todos ledes escrito nele, em caracteres significativos, porém modestos, tão inteira probidade e amor às sagradas instituições do Brasil, quanta resistência legitima e sincera às desordens, ou poder, ou do povo. Se eu ponho por diante o nome que trago é que não saberei nunca, nem poderei, renegá-Io. Senhores, ser-me-á conferida a honra que procuro? Não há de o meu reconhecimento ser menor que a minha glória. Se me não for lícito, porém, tanta fortuna, ficarei contente vendo que a outros mais dignos confiastes o solene mandato. Vosso amigo devoto, Dr. Aureliano Cândido Tavares Bastos".

Em 10 de janeiro de 1929. Graciliano Ramos assim informava como administrava a Prefeitura de Palmeira dos Índios:
“Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem com assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos.

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Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca.

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Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade”.

Matérial amplamente distribuido em Maceió, nas últimas eleições, para convencer o eleitor a votar:





quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Ovante Hino de Alagoas


Alagoas completa hoje, 16 de setembro, 191 anos da sua emancipação política e o feriado acertou bem no meio da semana: uma quarta-feira.

Nada para fazer numa tarde nublada e modorrenta aqui pelo Farol. Da janela ouço, de lá da Avenida da Paz, os acordes do hino de Alagoas, que tentei inutilmente aprender a cantar durante o curso ginasial do Colégio Estadual de Alagoas.

Sei que a letra é de Luiz Mesquita e a melodia de Benedito Silva. Lembrando das minhas infrutíferas aulas de música — acreditem: existia aula de música em escola pública — tentei acompanhar as vozes do coro, mas a letra, com suas expressões fora do nosso vocabulário cotidiano, terminou por me levar a refletir sobre como a língua portuguesa é mutável.

Nosso hino, que foi oficializado pelo Decreto Estadual nº 57 de 6 de junho de 1894, está recheado de palavras que permeavam o falar e escrever daquele período. Por curiosidade, relaciono a seguir algumas expressões que devem causar estranheza às gerações do século XX e XXI.

Radiosa: nem o Aurélio e nem o Michaelis informam sobre a palavra. O Priberam (Portugal) identifica o adjetivo com o significado de brilhante e resplandecente.

Refulge: no Aurélio, o verbo refulgir significa brilhar intensamente, resplandecer, refulgurar.

Donosa: no Aurélio, donoso é donairoso, gracioso, galante, bonito, formoso, belo.

Pulcra: para o Aurélio, pulcro significa gentil, belo, formoso.

Hosana: no Aurélio é hino eclesiástico. Saudação, aclamação, louvor.

Varão: para o Aurélio é um indivíduo do sexo masculino. Homem adulto, corajoso, esforçado, respeitável.

Sóis: o verbo soer, no Aurélio, significa ser comum, frequente, vulgar; ocorrer ou acontecer geralmente; costumar.

Ridentes: que ri; sorridente. Satisfeito, alegre, contente. Vicejante, verdejante. Assim define o dicionário do Aurélio Buarque de Holanda.

Ovante: para o Aurélio é triunfante, jubiloso, vitorioso.

Sus: não tem nada a ver com o sistema único de saúde. É uma exclamação para dar ânimo, coragem, segundo o Aurélio.

Sus! Espero que todos estejam ridentes, cantando hosanas por essas radiosas informações inúteis.

Hino de Alagoas

Alagoas, estrela radiosa,
Que refulge ao sorrir das manhãs,
Da República és filha donosa,
Magna Estrela entre estrelas irmãs.

A alma pulcra de nossos avós.
Como benção de amor e de paz,
Hoje paira, a fulgir sobre nós,
E maiores, mais fortes nos faz.

Tu, liberdade formosa,
Gloriosa hosana entoas:
Salve, ó terra vitoriosa!
Glória a terra de Alagoas!

Esta terra quem há que idolatre-a
Mais que os filhos que lhe são?
Nós beijamos o solo da Pátria
Como outrora o romano varão.

Nesta terra de sonhos ardentes,
Só, palpitam, como alma de sóis,
Corações, corações de valentes,
Almas grandes de grandes heróis!

Tu, Liberdade formosa,
Triunfal hosana entoas:
Salve, ó terra gloriosa!
Berço de heróis! Alagoas!

Ide, algemas que o pulso prendias
Desta Pátria, outros pulsos prender.
Nestes céus, nas azuis serranias,
Nós, só livres, podemos viver.

E se a luta voltar, hão-de os bravos
Ter a imagem da Pátria por fé.
Que Alagoas não procria escravos:
Vence ou morre!... Mas sempre de pé

Tu, Liberdade formosa,
Ridentes hinos entoas:
Salve, ó terra grandiosa
De luz, de paz, Alagoas!

Salve, ó terra que, entrando no templo.
Calmo e ovante, da indústria te vás;
Dando as tuas irmãs este exemplo
De trabalho e progresso na paz!

Sus! Os hinos de glórias já troam!...
A teus pés os rosais vêm florir!...
Os clarins e fanfarras ressoam,
Te levando em triunfo ao porvir!

Tu, liberdade formosa,
Ao trabalho hosanas entoas!
Salve, ó terra futurosa!
Glória a terra de Alagoas!

Obtido em "http://pt.wikisource.org/wiki/Hino_do_estado_de_Alagoas"






quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Anistia: 30 anos

Visita de organizadores do PT: Heitor de Souza Santos, dep. Edson Khair, Luíz Inácio Lula da Silva, Manoel Henrique, Gilney Amorim, Yara, Wagner Benevides, presídio da Frei Caneca-RJ, em 1979

Anistia: 30 anos

Lideranças políticas, com Ulysses Guimarães à frente, "atropelam" a polícia e os cachorros em Salvador, 1979, em um dos atos mais expressivos da campanha pela Anistia

Anistia: 30 anos


Teotônio Vilela, por ocasião do recebimento do prêmio Guerreiro, em 1983. Maceió

Anistia: 30 anos

Comissão da Ansitia do Senado

Anistia: 30 anos

Presídio da Frei Caneca-RJ. Senador Teotonio Vilela e o senador Luiz Viana Filho, Presidente do Congresso

Anistia: 30 anos


Manifestação pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, realizada no centro de São Paulo. 21-08-79

Anistia: 30 anos

Greve de fome de 22-07 a 22-08-79 no presídio da Frei Caneca-RJ

Anistia: 30 anos

Teotônio Vilela e dirigentes do MDB de Pernambuco

Anistia: 30 anos


Cartaz de Otávio Roth para Campanha pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita.

Anistia: 30 anos

Cartaz de denúncia de mortos e desaparecidos políticos desde 1964, no Brasil.

Anistia: 30 anos

Cartaz da campanha pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita

Anistia: 30 anos


Cartaz da campanha pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita

Anistia: 30 anos

Cartaz da campanha pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita

Anistia: 30 anos


Cartaz da campanha pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita

Alagoas na luta por Anistia.


Entidade e lideranças populares, na Rua do Comércio em Maceió, cobram a aprovação da Lei da Anistia, em 1979.




Teotônio Vilela, Cidadão da Anistia

Ato de fundação do PMDB, no Teatro Deodoro, em 1980 - Foto: Adailson Calheiros

Teotônio Vilela, Cidadão da Anistia


Teotônio discursa no Congresso durante a aprovação da Lei da Anistia, em 28 de agosto de 1979.

Cidadão da Anistia


O texto a seguir é da Nice Vilela. Rende homenagem ao menestrel Teotônio Vilela, já que amanhã, 28/08, comemoramos 30 anos da votação da lei da anistia.




Em 28 de agosto de 1979 o Brasil avançava na sua redemocratização, graças à aprovação da reivindicada, discutida e, de certa forma, até frustrada Lei da Anistia Política. Mas o povo brasileiro sabia que embora não houvesse a anistia ampla e irrestrita, tão esperada à época, era, de fato, o primeiro e importante passo para uma nova fase na política nacional.E não se pode pensar, falar e debater anistia, sem se pensar, falar e debater o decisivo papel que Teotônio Brandão Vilela teve em todo esse processo.
A liberdade sempre esteve na pauta de sua vida e, no exercício da política, em momento algum, ele deixou de defender a causa da democracia como fundamento para um Brasil desenvolvido e socialmente justo, de gente forte e livre através do pensamento, da fala e da escrita. Era assim Teotônio. Teotônio das Diretas Já, da Anistia Política; Teotônio da Viçosa, das Alagoas, da Cidadania.Não foi à toa que se imortalizou como o Guerreiro da Paz e como o Peregrino da Liberdade, sábio nos ensinamentos e corajoso na defesa de cada um de seus ideais.
A história nos mostra hoje, 30 anos depois, que Teotônio Vilela não foi apenas um bravo presidente da Comissão Mista da Anistia no Congresso Nacional. Foi mais além. Levou a anistia à sociedade civil, e a sociedade civil à anistia.E mesmo tendo subido nos palanques da anistia ampla, geral e irrestrita, tendo feito uma campanha, essa sim, ampla e irrestrita, dentro efora do Congresso Nacional contra a proposta de anistia do governo, Teotônio consolidou-se como o “Comandante da Anistia”. Era, também e, sobretudo, dele a comemoração de tantos e tantos brasileiros com essa lei.
De lá para cá, houve avanços positivos e embora saibamos que nenhuma lei e nenhum ato, em favor das vítimas da ditadura possam apagar o terror, as mortes, as dores e o medo daqueles anos, a caminhada de Teotônio Vilela nos deixa o alento de que a coragem cívica dele foi preponderante para as transformações políticas deste país.
E, a cada 28 de agosto se faz necessário lembrar essa data para que a história não se perca no tempo. A história de um alagoano que ganhou notoriedade pelas ações em favor da liberdade de cada brasileiro, seja ele o que estava lutando contra a ditadura militar ou não, orgulha Alagoas e os alagoanos e, certamente, estimula a todos os brasileiros que querem fazer da política um trabalho sério em defesa da democracia e do desenvolvimento.O empenho com que Teotônio se dedicou ao Brasil da Cidadania fica na história como exemplo imutável de civismo e de brasilidade.


Janice Vilela - Superintendente da Fundação Teotônio Vilela

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Dilma diminui distância para Serra

Veja abaixo, no gráfico, a evolução dos números nas pesquisas que a Vox Populi fez em dezembro de 2008, maio 2009 e agosto de 2009, dos pré-candidatos José Serra (PSDB) e Dilma Roussef (PT). Há uma clara tendência de diminuição da distancia entre eles.


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Ex-jogadores em atividade


É atribuída a Paulo César Vasconcellos, comentarista da Sportv, a criação da expressão "ex-jogadores em atividade", referindo-se a atletas que supostamente tenham ultrapassado o prazo de validade em suas carreiras esportivas. A dúvida a ser respondida é se a permanência desses jogadores nos gramados se deve a falta de renovação de bons jogadores, ou se a medicina esportiva tem evoluído a ponto de prolongar a vida atética deles. Tendo a ficar com a segunda hipótese. O que me faz decidir assim e a observação dos ricos clubes europeus, que podendo contratar facilmente craques da bola em países com um futebol mais pobre — em salários de jogadores — mas, no entanto, mantêm em seus plantéis jogadores com larga experiência. O italiano Milan, até o ano passado, mantinha um dos times mais velhos do mundo.
Fiz uma breve pesquisa na net e apresento a relação dos 20 jogadores mais "antigos" em atividade no futebol brasileiro. Tirem suas conclusões: são craques, ainda em forma, ou não surgiu ninguém melhor para substituí-los?

Rendo minhas homenagens, com a foto, ao "vovô-garoto" Fernando, do Santo André, que vi correr mais do que o atacante do time adversário, num final de partida.


42 anos Fernando (Santo André)
40 anos Antonio Carlos (Santos)
40 anos Viola (Resende)
39 anos Sérgio Alves (Ceará)
39 anos Júnior Baiano (Volta Redonda)
39 anos Túlio Maravilha (Itumbiara)
37 anos Marcelinho Carioca (Santo André)
37 anos Ramon Menezes (Vitória)
36 anos Petkovic (Flamengo)
36 anos Marques (Atlético - MG)
36 anos Júnior (Atlético – MG)
36 anos Giovanni (Mogi Mirim)
36 anos Marcos (Palmeiras)
36 anos Rogério Ceni (São Paulo)
36 anos Jackson (Vitória)
35 anos Paulo Isidoro (Bahia)
35 anos Márcio Angonese (Criciúma)
35 anos Danrlei (Brasil de Pelotas)
35 anos Anderson Lima (Chapecoense)
35 anos Bilu (Ponte Preta)

domingo, 16 de agosto de 2009

Apartheid social e violência: quem veio primeiro?


Na manhã deste domingo nublado de Maceió, o portal de notícias Cada Minuto destaca que “assaltos a carteiros levam Correios a suspender entregas em regiões de Maceió”. Quando li, a palavra que me veio à mente foi apartheid

Se puxarmos pela memória mais recente vamos encontrar noticias semelhantes divulgando que motoristas de ônibus se negam a fazer certos percursos por insegurança e que professores e médicos abandonam suas funções na periferia pelo mesmo motivo. 

Há poucos dias, em uma manifestação de protesto no bairro do Jacintinho, assaltaram a equipe de reportagem da Gazeta de Alagoas, o que poderá afastar os profissionais da notícia das zonas de riscoA SAMU cobra o acompanhamento de uma escolta policial para fazer atendimentos a alguns bairros periféricos de Maceió. 

Poderíamos concluir, apressadamente, que a violência vai construindo uma barreira que separa os mais pobres dos outros segmentos sociais. Mas há outra forma de analisar o mesmo fenômeno: uma sociedade que exclui os mais pobres, afastando-os do acesso ao trabalho e aos serviços básicos como educação e saúde, não está gerando todas as condições para o surgimento da violência urbana?

O apartheid social não seria um componente estrutural das sociedades em que o homem explora o homem? 

Uma boa reflexão para um domingo de chuvas.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O perigo da utopia


Artigo publicado no jornal Valor Econômico desta quarta-feira (12)


José Luís Fiori


"...a geopolítica do equilíbrio de poderes e a prática do imperialismo explícito deixaram de fazer sentido devido a uma série de novos fatos históricos [...] esta abordagem das relações internacionais não tem mais espaço no mundo em que vivemos, do pós-colonialismo, da globalização, do sistema político global, e da democracia [...] com a globalização, todos os mercados estão abertos e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado [...] Resulta ainda daqueles fatos que a guerra entre grandes países também não faz mais sentido [...] No Século XX, as guerras entre as grandes potências não faziam sentido porque todas as fronteiras já estavam definidas." - Luiz Carlos Bresser-Pereira, em "O mundo menos sombrio", Jornal de Resenhas, nº 1, 2009, USP, p. 7
Na segunda metade do Século XX, em particular depois de 1968, tornou-se lugar comum a crítica dos "novos filósofos" europeus, que associavam a utopia socialista ao totalitarismo. Mas não se ouviu o mesmo tipo de reflexão, depois da década de 80, quando a utopia liberal se tornou hegemônica e suas ideias tomaram conta do mundo acadêmico e político. Logo depois da Guerra Fria, Francis Fukuyama popularizou a utopia do "fim da história" e da vitória da "democracia, do mercado e da paz". E apesar dos acontecimentos que seguiram, suas ideias continuam influenciando intelectuais e governantes, sobretudo na periferia do sistema mundial. Basta ver a confusão causada pelo anúncio recente da decisão americana de ampliar sua presença militar na América do Sul. Com a instalação ou ampliação de sete bases militares no território colombiano, que deverão servir de "ponto de apoio para transporte de cargas e soldados no continente e fora dele" (FSP, 05/08/09).


O governo americano justificou sua decisão com objetivos "de caráter humanitário e de combate ao narcotráfico". A mesma explicação que foi dada pelo governo americano, por ocasião da reativação da sua IV Frota Naval, na zona da América do Sul, no ano de 2008 : "Uma decisão administrativa, tomada com objetivos pacíficos, humanitários e ecológicos" (FSP, 09/07/08). Uma das funções dos diplomatas é participar deste jogo retórico que às vezes soa até um pouco divertido. E cabe aos jornalistas o acompanhamento destes debates sobre distâncias, raio de ação dos aviões, ameaça das drogas etc. Todavia, os intelectuais têm a obrigação de transcender este mundo da retórica e dos números imediatos e também o mundo das fantasias utópicas, o que às vezes não acontece, e não se trata - evidentemente - de um problema de ignorância.
Pense-se, por exemplo, na utopia liberal do "fim das guerras", que já não fariam mais sentido entre os grandes países, e contraponha-se este tese com a história passada e a história dos Séculos XX e XXI. Segundo a pesquisa e os dados do historiador e sociólogo americano, Charles Tilly, "de 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos, a cada 14 meses. A era nuclear não diminuiu a tendência dos séculos antigos a guerras mais frequentes e mais mortíferas [aliás], desde 1900, o mundo assistiu a 237 novas guerras, civis e internacionais [enquanto] o sangrento Século XIX contou 205 guerras" (Charles Tilly, Coerção, capital e Estados europeus , Edusp, 1996, p. 123 e 131).
Mesmo na década de 1990, durante os oito anos da administração Clinton, que foi transformado na figura emblemática da vitória da democracia, do mercado e da paz, os EUA mantiveram um ativismo militar muito grande. E, ao contrário da impressão generalizada, "os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções militares" (Bacevich, 2002: p:143). E mais recentemente, os "fracassos" militares dos EUA, no Iraque e no Afeganistão - ao contrário do que dizem - aumentaram a presença militar dos EUA na Ásia Central e o cerco da Rússia e da China, envolvendo, portanto, preparação para a guerra entre três grandes potências. Em tudo isto, fica clara a dificuldade intelectual dos liberais conviverem de forma inteligente com o fato de que as guerras são uma dimensão essencial e co-constitutiva do sistema mundial em que vivemos, e que portanto não é sensato pensar que desaparecerão. Ao contrário do que pensam os liberais, a associação entre a "geopolítica do equilíbrio de poderes" e as guerras não se restringe ao Século XIX - já havia sido identificada na Grécia - e o sonho do "governo mundial" das grandes potências existe pelo menos desde o Congresso de Viena, em 1815, sem que isto tenha impedido o aumento do número dos Estados e das guerras nacionais.
Neste tipo de sistema mundial, por outro lado, é muito difícil acreditar na possibilidade do "fim do imperialismo", e ainda menos neste início do Século XXI, em que as grandes potências - velhas e novas - se lançam sobre a África e sobre a América Latina disputando palmo a palmo o controle monopólico dos seus mercados e das fontes de energia e matérias-primas estratégicas. E soa quase ingênua a crença liberal nos "mercados abertos", num mundo em que todas as grandes potências impedem o acesso às tecnologias de ponta, não aceitam a venda de suas empresas estratégicas e protegem de forma cada vez mais sofisticada seus produtores industriais e seus mercados agrícolas. Neste ponto, chama atenção a facilidade com que os economistas liberais confundem os mercados de petróleo, armas e moedas, por exemplo, com os mercados de chuchu, queijos e vinhos.
Em tudo isto, o importante é que a utopia liberal também pode ter consequências nefastas, sobretudo para os países que não estão situados nos primeiros escalões da hierarquia de poder do sistema mundial. Se as utopias de esquerda levaram - em muitos casos - ao totalitarismo, a utopia liberal e sua permanente negação do papel poder e da preparação para a guerra, na história do capitalismo e das relações internacionais, leva, com frequência, os intelectuais e dirigentes destes países mais fracos à uma posição de servilismo internacional.


José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações" (Editora Boitempo, 2007).

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

VII Ciclo de Palestras em Conforto Ambiental


O Grupo de Estudos em Conforto Ambiental – GECA, é formado por alunos e professores do curso de Arquitetura e Urbanismo, e alunos do curso de pós-graduação em Dinâmicas do Espaço Habitado, ambos ligados a Universidade Federal de Alagoas – UFAL.

Desde 1992, ano de sua fundação, o grupo tem realizado pesquisas nas diversas áreas relacionadas ao conforto ambiental gerando conhecimento e contribuindo para o desenvolvimento tecnológico no ambiente construído. Os principais temas abordados nas pesquisas realizadas pelo GECA são: clima e arquitetura, conforto ambiental (térmico, lumínico e acústico) e eficiência energética.

Há 7 anos, o GECA realiza anualmente um ciclo de palestras em Conforto Ambiental, contando com um público acadêmico das diversas instituições existentes, e profissional. A sétima edição do evento será realizada este ano, com o tema: “Eficiência Energética na Arquitetura”.

A escolha da temática foi impulsionada pelas crescentes discussões sobre o novo Processo de Etiquetagem para Edificações, lançado pelo INMETRO este ano. O GECA é um dos 13 laboratórios escolhidos no país para desenvolver pesquisas relacionadas ao programa de etiquetagem, tendo assim a oportunidade de contribuir concretamente com as questões a serem levantadas no Ciclo.

O evento contará com a presença de profissionais especializados na área de Eficiência Energética, que abordarão aspectos gerais sobre a Eficiência Energética, Fontes Alternativas de Energia e o Regulamento Técnico de Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos. As palestras não se deterão somente a uma abordagem teórica, mas também contarão com exemplos práticos, visando uma melhor compreensão por parte do público.

Este ano o VII Ciclo de Palestras pretende promover uma integração ainda maior entre a comunidade acadêmica e os profissionais da área, visto que a Eficiência Energética é um tema cada vez mais debatido nas diferentes esferas do conhecimento. A preocupação com a conservação de energia, com o meio-ambiente faz com que arquitetos e demais profissionais da área busquem informações corretas e confiáveis sobre este tema É com este objetivo que o GECA promove o VII Ciclo de Palestras em Conforto Ambiental, não perca!

Data: 09 a 11 de setembro das 19 às 22 horas.

Local: Auditório da Casa da Indústria, Farol.

Inscrições e programação: no GECA, UFAL ou pelo fone: (82) 3214-1268

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Em direção ao grunhido



Provocado que fui pelo amigo Borjão, me cadastrei no tal do Twitter. Há muito tempo já vinha recebendo convites, mas relutava em acrescentar mais algum canal digital no que considero uma já ampla inserção nesse mundo, afinal já uso email, orkut e blog. Confesso que até agora ainda não consegui entender direito o porquê de tanta badalação em torno do Twitter. Não é um blog e nem sala de bate-papo. Li textos de pessoas que o usam como um diário: achei esquisito alguém escrever que está indo ao barbeiro. Vou terminar por me associar ao José Saramago quando afirma que “os tais 140 caracteres reflectem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido”.
Acredito que ainda haverá um processo de “acomodação” dessa nova ferramenta e aí sim, vamos poder avaliar melhor o Twitter. Por enquanto vou ficar acompanhando de perto.

sábado, 25 de julho de 2009

O Congresso da UNE: cobertura inescrupulosa


Augusto Chagas (novo presidente da UNE)

O tratamento dispensado por parte da chamada grande mídia às organizações do movimento social no Brasil sempre foi o da desqualificação, criminalização e combate aberto. Com a UNE a situação não é diferente, mas houve, no último período, uma elevação no tom maldoso e até inescrupuloso com o qual esses veículos têm tratado a entidade que representa os estudantes universitários brasileiros.
A UNE acaba de sair do seu 51º Congresso, um dos mais importantes e o mais representativo da sua história. Mais de 2.300 instituições de ensino superior elegeram representantes a este fórum, contabilizando as impressionantes marcas de 92% das instituições envolvidas, mais de 2 milhões de votos nas eleições de base e de 4 milhões e meio de universitários representados.
Nosso Congresso mobilizou estudantes de todo o país, que por cinco dias debateram o futuro do Brasil – a Popularização da Universidade, Reforma Política, Democratização da Mídia, Defesa do Pré-Sal, etc. Se a imprensa brasileira trabalhasse a favor da democracia, esses assuntos seriam manchete em todos os jornais, rádios e canais de televisão e a disposição da juventude em lutar por um país melhor seria divulgada.
No entanto, estes veículos nos dedicaram tratamento bem diferente nestas duas últimas semanas. Cumprindo com fidelidade o ensinamento de Goebbels – uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade – a mídia escandalosamente busca subterfúgios para atacar a UNE, taxando-a de governista, vendida, aparelhada e desvirtuada de seus objetivos. Com isso, tenta impor a todos os seus pontos de vista, sem qualquer mediação ou abertura para apresentar o outro lado da notícia.
Uma destas grosserias tem a ver com o recebimento de patrocínios de empresas públicas por parte da entidade. A UNE nunca recebeu recurso público para aplicá-lo no que bem entendesse. Recebe sim, e isto não se configura em nenhuma irregularidade, apoio para a construção de nossos encontros. Tampouco, estas parcerias comprometeram as posições políticas da entidade. Não nos impediu, por exemplo, de desenvolver uma ampla campanha – com cartazes, debates, passeatas e pronunciamentos – exigindo a demissão de Henrique Meirelles da presidência do Banco Central, que foi indicado por este mesmo governo. Não nos furtamos de apresentar nossas críticas ao MEC por sua conivência ao setor privado da educação, como no caso do boicote que convocamos ao ENADE por dois anos consecutivos.
Mas, onde estavam os jornais, as TVs, rádios e revistas para noticiar essas manifestações? Reunimos, em julho de 2007, mais de 20 mil pessoas na Esplanada dos Ministérios para pedir mudanças na política econômica do governo Lula e nenhuma nota foi publicada ou divulgada sobre isso.
Os mesmos jornais que se horrorizam com o fato de termos recebido recursos para reunir 10 mil estudantes de todo o Brasil não parecem incomodados em receberem, eles próprios, um montante considerável de verbas publicitárias do governo federal. Em 2008, as verbas públicas destinadas para as emissoras de televisão foram de R$ 641 milhões, já os jornais receberam quase R$ 135 milhões.
Ora, por qual razão os patrocínios recebidos pela UNE corrompem nossas ideias enquanto todo este recurso em nada arranha a independência destes veículos? A UNE desafia cada um deles: declarem que de hoje em diante não aceitam um centavo em dinheiro público e faremos o mesmo! De nossa parte temos a certeza que seguiremos nossa trajetória!
Com certeza não teremos resposta. Pois não é esta a questão principal. O que os incomoda e o que eles querem ocultar é a discussão sobre o futuro do Brasil e a opinião dos estudantes.
Não querem lembrar que durante a década de 90 os estudantes brasileiros – em jornadas ao lado das Centrais Sindicais, do MST e de outros movimentos sociais - saíram às ruas para denunciar as privatizações, o ataque ao direito dos trabalhadores e a ausência de políticas sociais. Que foram essas manifestações que impediram o governo Fernando Henrique Cardoso de privatizar as universidades públicas através da cobrança de mensalidades.
Não reconhecem que após a eleição do presidente Lula, a UNE manteve e ampliou suas reivindicações. Resultado delas, conquistamos a duplicação das vagas nas universidades públicas, o PROUNI e a inédita rubrica nacional para assistência estudantil, iniciando o enfrentamento ao modelo elitista de universidade predominante no Brasil. Insinuam que a UNE abriu mão de suas bandeiras históricas, mas esquecem que não há bandeira mais importante para a tradição da UNE do que a defesa de uma universidade que esteja a serviço do Brasil e da maioria do nosso povo!
Não se conformam com a democracia, com o fato de termos um governo oriundo dos movimentos sociais e que, por esta trajetória, está aberto a ouvir as reivindicações da sociedade.
A UNE não mudou de postura, o que mudou foi o governo e o Brasil e é isso que os conservadores e a mídia que está a serviço desses setores não admitem. Insistem em dizer que a UNE nasceu para ser ‘do contra’. Rude mentira que em nada nos desviará de nossa missão!
Saibam que estamos preparados para mais editoriais, artigos, comentários e tendenciosas ‘notícias’. Contra suas pretenções de uma sociedade apática, acrítica e sem poder de contestar os rumos que querem impor ao nosso país, eles enfrentarão a iniciativa criativa e mobilizadora dos estudantes na defesa de um novo Brasil. Há de chegar o dia em que teremos uma comunicação mais justa e equilibrada. A UNE e sua nova diretoria estão aqui, firmes e à disposição do verdadeiro debate de rumos para o Brasil!

* Artigo originalmente publicado no site da revista Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/)

domingo, 5 de julho de 2009

Papel no Varal em noite de chuva


Ricardo Cabús


Quando cheguei ao Bar Delícia das Águas, meia hora antes das oito, estava tudo pronto. Taísa e sua equipe já haviam deixado o varal de acordo com o figurino. Os cem poemas de cem autores estavam aleatoriamente pendurados nas áreas cobertas do bar. Cris Braun já tinha preparado o som como queria, com seus cabos e microfone a postos. Havia um detalhe no ajuste do som ambiente, que foi resolvido depois de alguma negociação com os botões da mesa de som. Tayra e Amanda atendiam os clientes que chegaram cedo ou nem sabiam do sarau que iria ocorrer logo em seguida. A chuva havia parado, mas o céu dizia que a noite seria molhada. A banca de livros foi montada, com obras de poetas alagoanos, graças ao Marcos de Farias Costa que forneceu parte do generoso acervo de poesia do sebo Dialética. Fernando Fiúza, Tainan Costa e Arriete Vilela também deixaram alguns exemplares.
Embora previsto para as oito, o evento começou pontualmente às nove horas. Não adianta dar murro em ponta de faca. Esse tempo serviu para boas conversas e apresentações entre pessoas que passavam a se conhecer a partir de um motivo comum. Chamei o Zé Márcio para abrir a noite, após explicar o Projeto e as regras do sarau – qualquer um pode ler qualquer poema do varal, porém um poeta não pode ler seu próprio poema e só vale o que está no varal. Para dar um norte, Zé Márcio escolheu Pontos Cardeais do Marcos de Farias Costa. Daí, seguiram-se 50 minutos de poemas interpretados por muita gente legal. Dentre outros, Jorge de Lima, Alice Ruiz, Augusto dos Anjos e Jorge Cooper se misturaram a Chico Doido do Caicó, Paulo Leminski, Mário Benedetti e TS Eliot nas mais diferentes vozes e interpretações.
Veio o intervalo e Cris Braun tomou conta do palco dando um super show, com direito a se pendurar no banco e contar histórias dos tempos de Sex Beatles, quando suas coxas foram eleitas as mais gostosas do país pela revista Heavy Metal. Voltamos para a segunda parte do sarau e convidei o Paulo Poeta para declamar Patativa do Assaré. A partir deste momento, novos atores surgiram e a noite de poesias aconteceu surpreendentemente até pouco depois da meia-noite, quando convidei Altair Roque para uma canja que varou a madrugada.
Chamou a atenção a quantidade de jovens que participaram ativamente do sarau, se juntando aos veteranos, como Dydha Lyra, Fernando Fiúza, Letícia, Malu e a própria Cris Braun que também se destacou na interpretação de poemas. Os jovens em geral começavam tímidos, tensos e se soltavam com o andar do poema. A declamação de Beijo Eterno de Castro Alves, por Rachel foi um dos pontos altos dessa leva. Amanda também interpretou com bela desenvoltura alguns poemas. Por sua vez Allan, a caminho do palco, antes de ler mais uma peça, disse a frase da noite: “Isto vicia”.
Aqui, acolá ocorreram algumas transgressões às regras do sarau por pessoas que chegaram atrasadas e não sabiam do jogo. Mas nada que comprometesse o espírito de participação coletiva onde a poesia se sobrepõe ao indivíduo. E a chuva? Sim, a chuva voltou várias vezes e em alguns momentos deu ao vento a oportunidade de jogar um banho em quem ficasse próximo às bordas do toldo, postado na entrada do bar.
E mesmo assim, com chuva no céu e final da Copa do Brasil nas tevês, o Papel no Varal compartilhou poesia com algo em torno de uma centena de seres permeáveis ao sentimento brotado de outra centena de autores que juntaram palavras que foram impressas e jogadas em um varal, quarando ao vento de em uma noite úmida e feliz.


Ricardo Cabús (r.cabus@gmail.com), coordenador do Projeto Papel no Varal, é poeta e professor universitário.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Crise na Assembléia e Limites Políticos da Sociedade Civil Alagoana



Golbery Lessa, historiador
Foto: José Feitosa

Em fevereiro do presente ano, a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que abriu a possibilidade do retorno à casa de Tavares Bastos dos deputados estaduais afastados pela Justiça teve o efeito de despertar na sociedade civil maior vigor na busca de novos caminhos para a mobilização referentes à mudança da cultura política local. A postura anterior das várias entidades reunidas no Movimento Contra a Criminalidade e a Corrupção (MSCC) baseava-se no elitismo, num exagero na moderação prática e ideológica (algo fora do lugar num contexto de emergência política e ética) e no excesso de confiança no discurso jurídico (como se este fosse suficiente e o único pertinente). O esperado golpe da atual ilegítima mesa diretora de não instalar os trabalhos legislativos do ano de 2009 no dia marcado para uma significativa manifestação popular foi respondido, brilhantemente, com o contragolpe da ocupação do plenário e a instalação simbólica de uma “Assembléia Legislativa Popular”, contundente recado sobre a possibilidade real de um afastamento irreversível entre os poderes constituídos e a sociedade civil, com ocorreu em 17 de julho de 1997. Contudo, ainda há um logo caminho a percorrer para que os alagoanos encontrem forças suficientes para renovar o Poder Legislativo estadual e as suas práticas políticas. Será necessária principalmente uma profunda autocrítica do campo progressista.
Por quais motivos a sociedade civil não está conseguindo mobilizar-se com eficiência e efetividade contra as presumidas ilegalidades (mesmo respeitando o princípio do contraditório e sem querer julga no lugar da Justiça, temos o direito de dizer que existe uma montanha de indícios) praticadas na Assembléia Legislativa? As limitações políticas e ideológicas da mobilização popular estão expressando as limitações da sociedade civil alagoana na presente etapa de seu desenvolvimento, particularmente dos trabalhadores sindicalizados mais atuantes e dos setores empresariais “não-canavieiros”. Essas limitações têm relação com a configuração particular das classes sociais no Estado e a história das idéias e das práticas políticas locais. Deixemos os setores empresariais referidos para um artigo futuro e analisemos o outro sujeito social citado.
Os trabalhadores até agora mobilizados estão reunidos principalmente em entidade de funcionários públicos municipais, estaduais e federais, além de estarem nos movimentos de luta pela terra, cujos membros formam a massa disposta às ações mais contundentes e o grosso das passeatas. Segundo o site do MSCC, o movimento teria sido fundado pelos seguintes sindicatos e entidades: Sindicato dos Policiais Rodoviários (SINDPRF), Sindicato dos Servidores do Judiciário Federal e MPU (SINDJUS), Sindicato dos Urbanitários, Sindicato dos Trabalhadores em Seguridade Social (SINDPREV), Sindicato dos Servidores Públicos de São Miguel dos Campos (SIMESC), Sindicato dos Médicos, Sindicato dos Taxistas, Sindicato dos Trabalhadores em Educação (SINTEAL), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Ordem de Advogado do Brasil – AL. Vê-se que o grosso das entidades fundadoras do movimento é formado de funcionários públicos, principalmente federais, secundados pelos servidores estaduais (urbanitários e trabalhadores na educação). Esse perfil manteve-se inalterado até o presente momento (junho de 2009); basta ver que os “deputados populares” escolhidos simbolicamente durante a ocupação do plenário foram, na maioria, os dirigentes das entidades apontadas e uma minoria de lideranças dos movimentos agrários. O grosso dos trabalhadores do setor privado, a maioria dos trabalhadores da capital e do interior, e suas entidades representativas estiveram ausentes; essa ausência tem tido um impacto decisivo nos rumos práticos e ideológicos do movimento. Por quê? Porque sem diálogo e aliança com os trabalhadores do setor privado o sindicalismo dos funcionários públicos tende a projetar alguns limites estruturais de sua natureza nas práticas e na subjetividade dos movimentos políticos dos quais participa.
Os principais limites do sindicalismo no serviço público são os seguintes: 1) a estabilidade no emprego, arma necessária contra o clientelismo, modifica bastante o significado da greve e de outros atos de rebeldia da força de trabalho; a greve torna-se burocrática e destituída do caráter épico que tem no setor privado, onde existe a angustia pela possibilidade de perder o emprego, o ódio natural contra os pelegos, a vigilância radical dos acordos feitos pelas lideranças, entre outros dilemas; o caráter rotineiro da greve no serviço público cria espaço para um sindicalismo marcado pela moderação, o desleixo com o debate fundamentado de questões mais amplas e a supervalorização política das ações judiciais; essas circunstâncias geram a perpetuação das mesmas lideranças, dificuldade a renovação dos quadros sindicais; 2) a significativa quantidade de servidores que entraram sem concurso público (antes de 1988) por terem “costas quentes” e o grande número de cargos de confiança acabam cooptando para o “patrão” (o governo) ou para as correntes de clientelismo relevante parte das lideranças existentes na categoria, o que dificulta a organização pela base e as mobilizações por bandeiras políticas concretas; e 3) o servidor tem o estado como patrão e não a diretoria de uma empresa privada, o que termina gerando uma identidade entre mobilização sindical e mobilização política, ou seja, os servidores se colocam contra o governo de plantão com mais facilidade do que os trabalhadores privados e parecem se politizar muito mais rapidamente do que estes; contudo, ocorre de fato mais freqüentemente uma “politicização” do que uma politização, isto é, os servidores tendem a limitar os temas políticos a aspectos superficiais e a prognosticar o moralismo como remédio para todos os males, tendo grande dificuldade de perceber os embates econômicos decisivos entre as forças sociais e econômicas que estão na base do universo político; essa dificuldade de perceber os verdadeiros interesses em jogo é ainda reforçada pelo fato de que o próprio exercício da função pública, que objetiva regular os conflitos sociais, gerar a ilusão em quem a exerce de estar acima das classes , de ser um juiz imparcial dos interesses em luta.
Em 1950, os trabalhadores da indústria eram 44% da força de trabalho urbana de Alagoas e os funcionários públicos tinham uma participação muito menor, em torno de 10%. A expansão das atividades estatais iniciada no Estado Novo, continuada na época do “milagre brasileiro” e reforçada pela Constituição Federal de 1988 inverteu esse quadro: em 2000, os funcionários públicos passaram a ser 25% dos assalariados urbanos e os operários industriais foram reduzidos para 18%. Os servidores agora recebem quase 70% da renda do trabalho no Estado e têm em média a metade da participação entre a população que recebe de 3, 5, 10 e 20 salários mínimos. O setor privado passou a ser formado pelos comerciários (13% em 1950 do emprego urbano, 21% em 2000) e pelos prestadores de serviço (24% em 1950 do emprego urbano, 23% em 2000) na maioria empregada em empresas pequenas, mas não apenas nelas. Essas modificações na configuração da força de trabalho acompanharam as modificações no PIB, que passou a ser formado, a partir de meados dos anos 1980, majoritariamente pelo setor de serviços, com forte presença neste das atividades do setor público (administração, saúde, segurança e Justiça), numa porcentagem só alcançada em outros estados menos desenvolvidos do país.
Esta nova realidade quantitativa criou as possibilidades de um mundo diferente na representação sindical e política dos trabalhadores. As lutas sindicais do passado, baseadas nos trabalhadores do setor privado e lideradas pelos comunistas e trabalhistas deram lugar, notadamente a partir de meados dos anos 1980, a lutas nucleadas pelos funcionários públicos e orientadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Uma minoria entre os trabalhadores urbanos protegida pela estabilidade no emprego, lotada em entidades com centenas de indivíduos e possuidora de 70 % da massa salarial, passou a hegemonizar o sindicalismo e a representação política dos assalariados, deixando na penumbra uma maioria formada por operários industriais dispersos nas duas dezenas de usinas, na construção civil e em outros ramos industriais de menor expressão demográfica (os químicos são poucos, mas produzem 20% do PIB alagoano), bem como uma grande quantidade de comerciários espalhados em milhares de pequenas lojas (com exceção dos supermercados) e de assalariados do setor de serviços pessoais e a empresas. Criaram-se, assim, as condições para a existência de duas culturas políticas específicas, com lideranças, idéias e lógicas distintas e, em várias dimensões, antagônicas. Os trabalhadores do setor privado passaram a agir e pensar a política fora dos marcos clássicos do sindicalismo de esquerda, já que foram praticamente abandonados - ou incompreendidos - por esta corrente ideológica, convergindo apenas em alguns momentos com as idéias e as ações dos funcionários.
De modo geral, os trabalhadores alagoanos do setor privado são mais difíceis de organizar devido à existência de um substancial exército laboral de reserva no Estado e da inexistência de estabilidade no emprego, entre outras variáveis. Além destas, cada uma das categorias desses trabalhadores possui dificuldades específicas. Os operários das usinas têm dificuldade de se organizar porque os seus direitos de associação e expressão são negados na prática pelos empresários e outras instâncias de poder (são mais vigiados porque podem parar o coração econômico da oligarquia canavieira); os trabalhadores da construção civil, apesar de estarem concentrados em poucas grandes empresas, têm a desvantagem de conviverem com uma intensa dispersão das equipes ao final de cada obra; os comerciários na maioria estão dispersos em milhares de pequenas lojas, onde o paternalismo patronal e a vigilância se exercem com o mesmo empenho, com a exceção dos grandes supermercados. Algo análogo ocorre com as trabalhadoras domésticas (60 mil em Alagoas) e os assalariados do setor de serviços a empresas. Apesar disso tudo, esses assalariados teriam uma chance de constituírem sindicatos mais fortes se o imaginário político alagoano não estivesse tomado desde meados dos anos 1980 por idéias feitas à imagem e semelhança dos limites do sindicalismo dos servidores públicos, sindicalismo que nega a importância política do trabalhador do setor privado (visto como um lumpemproletariado que vende o seu voto e atrapalha o progresso das idéias progressistas), por mais que esta negação não apareça formulada com sinceridade.
O dia 17 de Julho de 1997, jornada de protesto liderada pelos servidores públicos estaduais que motivou a renúncia do então governador Divaldo Suruagy, ponto culminante de uma crise econômica que se expressava, entre outras coisas, no não pagamento do funcionalismo, foi emblemático dos limites e possibilidades do sindicalismo alagoano contemporâneo. Sua análise ensina sobre as atuais dificuldades de mobilização. Os funcionários públicos estaduais, com o apoio de toda a sociedade civil, derrubaram o mesmo governador no qual tinham votado dois anos e meio antes; o tinham escolhido na esperança de que Suruagy trouxesse de novo uma época áurea para os vencimentos dos servidores. Só que o governador, que até aquele momento era um verdadeiro mito, não foi capaz de realizar a tarefa impossível de trazer de volta a conjuntura de seus primeiros mandatos, nas quais havia dinheiro suficiente para obras públicas e expansão do gasto com pessoal. O “acordo dos usineiros” havia acabado de debilitar os cofres públicos e uma série de circunstâncias legais e econômicas impediram rolagem da dívida do Estado. Diante do acúmulo de meses sem pagamento, os servidores transformaram o apoio em crítica, a simpatia em ódio.
O verdadeiro levante armado de 17 de Julho de 1997 foi uma saída democrática e popular para uma quadra histórica na qual as classes dominantes caíram na inércia porque não tinham coesão nem projeto político definido, não possuíam lideranças públicas com iniciativa e só assistiam sua hegemonia deteriorar-se progressivamente. A partir de um determinado momento, a quase totalidade da população apoiava, mesmo que não ativamente, a vanguarda de sindicatos e associações de servidores públicos que encetou vários tipos de protestos e formas de mobilização até conseguir a destituição do governador, tendo realizado a tarefa aparentemente impossível de impor a sua vontade à maioria folgada que Suruagy possuía na Assembléia Legislativa. Esse movimento político tão poderoso não foi, por outro lado, capaz de aprofundar significativamente o seu diagnóstico e os seus objetivos; virou-se para uma saída moderada demais e muito imprudente para quem havia sofrido tanto com as aventuras do status quo: apoiou uma candidatura (Ronaldo Lessa) sem um compromisso claro com mudanças estruturais e se absteve de eleger uma bancada de deputados progressistas ao lançar a principal liderança do movimento (Heloísa Helena) para o senado federal. Ronaldo Lessa fez dois governos de centro-direita, repetindo no básico os projetos políticos tradicionais (é sempre possível encontrar um roda-pé progressista em qualquer governo e seria possível encontrá-lo no de Lessa, mas isso não muda o seu rumo político essencial). Heloísa transformou-se em liderança nacional e o Brasil a furtou de Alagoas (sua volta com vereadora em 2009 parece ser a forma que a história encontrou para reparar esse erro). Após 12 anos do dia 17 de Julho de 1997, a esquerda alagoana demonstra ter perdido o rumo ideológico e os votos, tornando-se uma força temporariamente residual; o poderoso movimento popular pariu um rato porque expressou a força e os limites de sua principal base social: os servidores públicos isolados dos trabalhadores do setor privado. Muita moral, revolta e capacidade de luta, mas diagnóstico superficial e idéias tímidas.
A fragilidade relativa da atual mobilização da sociedade civil alagoana contra o status quo político na Assembléia Legislativa se explica, entre outras variáveis, pelos limites ideológicos e políticos da base social da vanguarda sindical mobilizada, que se expressa na subjetividade e na ação dessa vanguarda. Seu discurso tem sido abstrato, fragmentado, legalista e eivado de um moralismo empobrecedor do debate. Diz que o sistema político é corrupto porque as principais lideranças são corruptas (uma afirmação quase tautológica) e esquece-se de explicar quais variáveis permitem que os corruptos cheguem ao poder e permaneçam nele.
Os seguintes fenômenos estruturais que determinam a corrupção e a crise no Legislativo são esquecidos: 1) a universalização da aposentadoria rural, a estruturação dos sistemas nacionais de financiamento da saúde e da educação, o Bolsa Família e os programas oficiais de crédito aos pequenos agricultores, entre outros fenômenos análogos, bem como a diminuição radical do número dos moradores das fazendas (a partir de meados dos anos 1980) provocaram mudanças profundas na situação do eleitorado, dando-lhe mais independência das redes de clientelismo e tornando muito mais cara a manutenção das chamadas “bases eleitorais”; 2) a participação majoritária do setor de serviços no PIB, a partir dos anos 1980, determinou o aumento do nível de urbanização do eleitorado e o fortalecimento de novos atores, como o funcionalismo público, os comerciários e os prestadores de serviço a empresas, robustecendo a sociedade civil e o peso da opinião pública no resultado das eleições (na verdade, essa urbanização do voto constituiu-se numa “reurbanização”, já que nos anos 1950 a impossibilidade do voto do analfabeto fizera o voto urbano ter uma importância decisiva, representando por volta de 40% do eleitorado), fatos que “inflacionaram” ainda mais o voto rural e tornaram o voto citadino muito caro para ser “comprado” sem um rede dispendiosa de clientelismo; e 3) o fortalecimento do poder político da União em relação aos Estados a partir de 1995 (por meio do Plano Real e uma série de medidas implementadas pelos governos de Fernando Henrique Cardoso: Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Kandir, Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados, vinculação de recursos para as áreas da educação básica [FUNDEF] e da saúde [Emenda Constitucional n° 29], etc.) diminuiu as arbitrariedades nas contas dos Estados que eram aproveitadas politicamente pelas oligarquias; esse desequilíbrio do pacto federativo, apesar de suas intenções neoliberais, teve, em Alagoas, um impacto positivo no que toca ao fortalecimento do espaço democrático ao abrir espaço para a valorização da polícia federal e do Ministério Público, agora reestruturados por constantes concursos e melhorias salariais.
As presumidas irregularidades no uso do dinheiro público na Assembléia Legislativa explicam-se, em nossa opinião, pelo conflito entre as novas circunstâncias hostis ao antigo status quo político e sua disposição de resistir às mudanças democratizantes que a nova realidade impõe. A inflação dos gastos nas campanhas políticas alagoanas originou-se do aumento radical da monetarização dos laços políticos nas cadeias de clientelismo e dos gastos com o marketing necessário para amealhar o voto de um eleitor mais moderno e independente. Em decorrência, diferente do passado, no qual o mandonismo político se realizava com acordos a fio de bigode, o poder político passou a ser determinado, para aqueles que não desejaram trilhar o saudável caminho da disputa democrática, cada vez mais pela capacidade de amealhar dinheiro sonante em quantidades cada vez maiores, daí a busca de acesso irregular aos fundos públicos. A corrupção no sistema político alagoano contemporâneo não é, portanto, expressão da onipotência de um grupo de políticos e a pretensa prova de que tudo permanecerá igualmente miserável nessa terra de natureza luxuriante, é a demonstração que uma nova etapa de modernização se aproxima e de que a sociedade civil precisa superar os seus limites para atenuar as dores do parto e moldar o futuro de maneira mais generosa.

Maceió-AL, junho de 2009.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O casaco de Marx


Uma vez, em um seminário, a filósofa Marilena Chaui chamou a atenção sobre a vida que há por detrás das grandes obras, os imensos desprendimentos de êxtase e sacrifício que a criação de um novo conhecimento para a humanidade exige. A leitura do pequeno e belo livro “O casaco de Marx. Roupas, memória e dor”, de Peter Stallybras (Belo Horizonte, Editora Autêntica), traz de volta este pensamento. O livro nos coloca dentro do lar dos Marx nos anos 1850 quando do exílio em Londres. Como relembra, seu biógrafo David Mclellan, a partir de um relatório de um espião prussiano, Marx vivia no outono de 1852 em um dos piores quarteirões de Londres. Submetidos às mais agudas carências, os Marx vão nestes anos se valer recorrentemente da penhora dos objetos familiares e de uso pessoal, uma prática generalizada de sobrevivência na classe operária inglesa da época. Em certas conjunturas mais difíceis, a prática do penhor nos bairros operários tinha um ciclo semanal: usa-se a roupa no domingo e se penhorava-a na segunda-feira para retomá-la no fim de semana seguinte. Nos casamentos operários, o anel era valorizado pois este era um item provavelmente penhorável e era comum as lojas de penhores serem cenários de despedidas dramáticas de objetos assim tão íntimos e estimados.Como nos conta o autor: “Em 1850, Jenny Marx penhorou objetos de prata em Francfurt e vendeu móveis em Colônia. Em 1852, Marx penhorou seu casaco de inverno para comprar papel para poder continuar a escrever. Em 1853, “tantos de nossos objetos absolutamente essenciais tinham feito o seu trajeto para a loja de penhores e a família tinha ficado tão pobre que, nos últimos dez dias, não se encontra um centavo em casa.” Em 1856, para financiar a mudança para a nova casa, eles precisaram não apenas de toda a ajuda de Engels, mas também penhorar algumas posses domésticas. Em 1858, em outro período de dramática crise financeira, Jenny Marx penhorou seu xale e, no final do ano, ela está afligida com cartas de cobrança de seus credores e foi forçada a “fazer excursões às lojas de penhores da cidade”. Em abril de 1862, eles deviam vinte libras do aluguel e tiveram que penhorar as roupas das filhas e de Helene Demuth, bem como as suas próprias roupas. Eles as recuperaram mais tarde, na primavera, mas tiveram que penhorá-las, de novo, em junho. Em janeiro do ano seguinte, além de lhes faltar alimentação e carvão, as roupas das filhas foram, outra vez, penhoradas e elas não puderam ir à escola. Em 1866, a família estava, outra vez, em uma situação aflitiva, tendo penhorado tudo que era possível e Marx não podia comprar papel para escrever.”Certo sábado à noite, ao tentar penhorar talheres de prata, Marx foi parar na delegacia: “Noite de sábado, judeu estrangeiro, roupa desordenada, cabelo e barba grosseiramente penteados, bela prata, timbre nobre – evidentemente, uma transação, de fato, bastante suspeita. Assim pensou o dono da loja de penhores a quem Marx se dirigiu. Ele, portanto, deteve Marx, com base em algum pretexto, enquanto chamava a polícia. O policial teve a mesma opinião que o dono da loja de penhores e levou o pobre Marx para a delegacia de polícia. Ali, outra vez, as aparências jogavam fortemente contra ele. ..Assim Marx recebeu a desagradável hospitalidade de uma cela policial enquanto a sua ansiosa família lamentava seu desaparecimento”.Eleanor Marx, a filha, lembra que o pai contava uma fábula maravilhosa de um tipo chamado Hans Rockle, dono de uma loja de brinquedos, que, por não conseguir pagar suas contas, tinha que se desfazer de seus brinquedos mais fantásticos. Os brinquedos, na fábula de Marx, após muitas aventuras, retornavam sempre à loja de Hans Rockle. Os pais de Eleanor tinham visto antes dela nascer oficiais de justiça entrar em sua casa e levar tudo, “inclusive os melhores brinquedos que pertenciam às filhas”, Jenny e Laura, que ficaram em lágrimas por causa da perda. Quando o casaco de Marx estava na loja de penhores durante o inverno, ele não podia ir ao Museu Britânico. Sem ir ao Museu Britânico, ele não podia realizar a pesquisa para “O Capital”. Todo o primeiro capítulo de “O capital” traça as migrações de um casaco, visto como uma mercadoria, no interior do mercado capitalista. Coincidência? “Penhorar um objeto é desnudá-lo da memória”, escreve o autor, “pois somente um objeto desnudado de sua particularidade histórica pode se novamente se tornar uma mercadoria e um valor de troca”. E, ao final, conclui: “Tornou-se um clichê dizer que nós não devemos tratar as pessoas como coisas. Mas trata-se de um clichê equivocado. O que fizemos com as coisas para devotar-lhes tal desprezo? E quem pode se permitir ter este desprezo? Por que os prisioneiros são despojados de suas roupas a não ser para que se despojem de si mesmos? Marx, tendo um controle precário sobre os materiais de sua autoconstrução, sabia qual era o valor de seu próprio casaco”.


Portal FPA.