segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Rebeldes do Futebol


Edberto Ticianeli
Eric Cantona no Cosmos de Nova York (Foto: Reprodução / Site Oficial)
 Eric Cantona

Não sei como a Globo permitiu, mas o SporTV deste domingo exibiu o documentário Rebeldes do Futebol, do ex-jogador francês Eric Cantona. Acredito que a programação carregada do final de ano tenha baixado a vigilância da empresa.

O documentário, que havia sido lançado em julho no Festival de Cinema de Sarajevo, na Bósnia e Herzegovina, mostra a trajetória política de cinco jogadores famosos: o bósnio Predrag Pasic, o marfinense Didier Drogba, o chileno Carlos Caszely, o argelino Rachild Mekhloufi e o nosso Sócrates.

Todos eles tiveram militância política em seus países contra ditadores ou guerras, numa prática que não é muito comum entre os desportistas. O próprio Cantona, no documentário, cita que essa politização acontece mais entre os artistas.

O estranhamento com a permissão da Globo para a exibição do documentário se dá porque a emissora tinha noticiado o lançamento, em julho, tomando o cuidado de esvaziá-lo da sua conotação política (leia aqui). Rebelde do Futebol foi reduzido a uma mostra da “história de vida de cinco jogadores, entre eles Sócrates, dentro e fora das campos”.

Assisti ao documentário e me emocionei com as histórias de coragem desses atletas e com as suas posturas lúcidas. É comovente ver a trajetória do chileno Carlos Caszely, que se negou a apertar a mão do ditador Pinochet e teve a sua mãe presa e torturada. São histórias muito diferentes da relação da Globo com a Ditadura Militar no Brasil, que foi de cumplicidade e até de acobertamento das atrocidades praticadas.

Mundaú & Manguaba: ALAGOAS TEM PRESSA


domingo, 16 de dezembro de 2012

Collor dá “munhecada no espinhaço” de Teotônio Vilela Filho


Edberto Ticianeli
 
A Gazeta de Alagoas, deste domingo (16/12), anuncia qual vai ser o tom utilizado pelo senador Fernando Collor (PTB) na disputa da vaga para o Senado com Teotônio Vilela Filho (PSDB) em 2014.

O jornal de propriedade de Collor não esconde que vai bater pesado nos usineiros para atingir o governador Teotônio Vilela. É a reedição da luta do bem contra o mal, que já deu certo antes e pode voltar a trazer dividendos eleitorais para o senador petebista.

A manchete da Gazeta afirma que os usineiros formam uma oligarquia e que dominam a economia e a política do nosso estado. O destaque da matéria é para o fato de que isso agora é feito sem intermediários, com os donos das usinas assumindo diretamente o comando.

A bem produzida reportagem da jornalista Carla Serqueira não é a única peça do jornal a atingir os usineiros. Ela tem o luxuoso apoio de um longo artigo assinado pelo próprio senador Fernando Collor. Com o intuito aparente de explicar a utilização indevida da sua expressão “munhecada no espinhaço”, o senador investe contra Teotônio Vilela e a sua forma morosa de administrar o estado.

Independente das motivações do senador Collor - que já usou esta mesma estratégia num passado recente -, esse desnudar das classes dominantes em Alagoas pode contribuir para reacender as discussões sobre quais os caminhos a serem trilhados para retirarmos o nosso estado do ranking vergonhoso em que se encontra.

Collor tem dado demonstrações que pretende reafirmar a sua imagem como a de um político que tem coragem. As suas posições na CPI do Cachoeira e essa estocada nos usineiros alagoanos anunciam que as eleições de 2014 poderão acontecer num clima de radicalidade política acima do comum. O roxo pode voltar a ser a cor da moda. 

sábado, 1 de dezembro de 2012

Compra de votos coloca OAB/AL como ficha suja

Edberto Ticianeli

O último embate na OAB em Alagoas vai deixar marcas na história de uma instituição que era referência, quando se pensava na garantia dos direitos humanos e na denúncia de corruptos e ladrões do dinheiro público. A Ordem também cumpriu um papel de destaque na luta contra a Ditadura, organizando e participando das mobilizações pela anistia.

A divulgação de uma gravação, contendo as conversas entre o atual presidente da entidade e os componentes da chapa apoiada por ele, foi o estopim de uma crise. Na fatídica reunião, há uma discussão sobre a possibilidade de se pagar as mensalidades atrasadas, habilitando irregularmente alguns causídicos eleitores.

A situação ficou mais séria com a tentativa frustrada de diminuir os danos com a explicação de que tal prática era comum nas eleições da OAB, e que todos utilizavam essa modalidade de compra de votos. O efeito foi pior do que o desejado. O discurso admitia que a chapa utilizava essa forma de conseguir eleitores, mas não fazia isso sozinha.

Imagine, nas eleições de 2014 - quando elegeremos presidente, governadores, senadores e deputados federais e estaduais -, uma conversa entre dois eleitores sobre a necessidade de denunciar os candidatos que compram votos. Certamente, nenhum deles vai indicar a OAB/AL como a instituição que deveria receber a denúncia.

Outra campanha importante - a que orienta a não se votar em candidatos fichas sujas -, também perde a participação destacada da OAB/AL. Fica complicado para o presidente eleito, Thiago Bomfim, explicar porque não cobrou de forma mais incisiva a apuração das denúncias, uma atitude que deixa transparecer que o espírito de corpo foi mais forte que o desejo de punir.

sábado, 24 de novembro de 2012

Desenhos que eu assistia na televisão


Edberto Ticianeli
 
Quando pensava que os desenhos animados da minha infância teriam ficado para trás, eis que eles voltam a povoar as lembranças de um tempo em que a televisão ainda era em preto e branco.

O primeiro a me ressurgir foi o Gato Félix. O velho felino me emprestou sua cara numa aula que ministrava sobre a história da televisão. Ele se revelou como um dos primeiros desenhos da TV americana.

Comecei a pensar nos desenhos que assistia e resolvi listar os 10 que mais frequentavam a nossa telinha. Precisei da ajuda e assessoria do Google para lembrar das imagens que povoaram as fantasias da minha infância.

Com algum esforço, para não cometer injustiças com o passado, listei meus 10 favoritos: Papa-Léguas, Pato Donald, Manda-Chuva, Pernalonga, Pepe Legal, Os Flinstones, Zé Colméia, Popeye, Pica-Pau e o campeão de todos, Tom e Jerry.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Nota do PT critica e discorda do STF


PT, amparado no princípio da liberdade de expressão, critica e torna pública sua discordância da decisão do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da Ação Penal 470, condenou e imputou penas desproporcionais a alguns de seus filiados.

1. O STF não garantiu o amplo direito de defesa

O STF negou aos réus que não tinham direito ao foro especial a possibilidade de recorrer a instâncias inferiores da Justiça. Suprimiu-lhes, portanto, a plenitude do direito de defesa, que é um direito fundamental da cidadania internacionalmente consagrado.

A Constituição estabelece, no artigo 102, que apenas o presidente, o vice-presidente da República, os membros do Congresso Nacional, os próprios ministros do STF e o Procurador Geral da República podem ser processados e julgados exclusivamente pela Suprema Corte. E, também, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de Estado, os comandantes das três Armas, os membros dos Tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática em caráter permanente.

Foi por esta razão que o ex-ministro Marcio Thomaz Bastos, logo no início do julgamento, pediu o desmembramento do processo. O que foi negado pelo STF, muito embora tenha decidido em sentido contrário no caso do “mensalão do PSDB” de Minas Gerais.

Ou seja: dois pesos, duas medidas; situações idênticas tratadas desigualmente.

Vale lembrar, finalmente, que em quatro ocasiões recentes, o STF votou pelo desmembramento de processos, para que pessoas sem foro privilegiado fossem julgadas pela primeira instância – todas elas posteriores à decisão de julgar a Ação Penal 470 de uma só vez.

Por isso mesmo, o PT considera legítimo e coerente, do ponto de vista legal, que os réus agora condenados pelo STF recorram a todos os meios jurídicos para se defenderem.

2. O STF deu valor de prova a indícios

Parte do STF decidiu pelas condenações, mesmo não havendo provas no processo. O julgamento não foi isento, de acordo com os autos e à luz das provas. Ao contrário, foi influenciado por um discurso paralelo e desenvolveu-se de forma “pouco ortodoxa” (segundo as palavras de um ministro do STF). Houve flexibilização do uso de provas, transferência do ônus da prova aos réus, presunções, ilações, deduções, inferências e a transformação de indícios em provas.

À falta de elementos objetivos na denúncia, deducões, ilações e conjecturas preencheram as lacunas probatórias – fato grave sobretudo quando se trata de ação penal, que pode condenar pessoas à privação de liberdade. Como se sabe, indícios apontam simplesmente possibilidades, nunca certezas capazes de fundamentar o livre convencimento motivado do julgador. Indícios nada mais são que sugestões, nunca evidências ou provas cabais.

Cabe à acusação apresentar, para se desincumbir de seu ônus processual, provas do que alega e, assim, obter a condenação de quem quer que seja. No caso em questão, imputou-se aos réus a obrigação de provar sua inocência ou comprovar álibis em sua defesa—papel que competiria ao acusador. A Suprema Corte inverteu, portanto, o ônus da prova.

3. O domínio funcional do fato não dispensa provas

O STF deu estatuto legal a uma teoria nascida na Alemanha nazista, em 1939, atualizada em 1963 em plena Guerra Fria e considerada superada por diversos juristas. Segundo esta doutrina, considera-se autor não apenas quem executa um crime, mas quem tem ou poderia ter, devido a sua função, capacidade de decisão sobre sua realização. Isto é, a improbabilidade de desconhecimento do crime seria suficiente para a condenação.

Ao lançarem mão da teoria do domínio funcional do fato, os ministros inferiram que o ex-ministro José Dirceu, pela posição de influência que ocupava, poderia ser condenado, mesmo sem provarem que participou diretamente dos fatos apontados como crimes. Ou que, tendo conhecimento deles, não agiu (ou omitiu-se) para evitar que se consumassem. Expressão-síntese da doutrina foi verbalizada pelo presidente do STF, quando indagou não se o réu tinha conhecimento dos fatos, mas se o réu “tinha como não saber”...

Ao admitir o ato de ofício presumido e adotar a teoria do direito do fato como responsabilidade objetiva, o STF cria um precedente perigoso: o de alguém ser condenado pelo que é, e não pelo que teria feito.

Trata-se de uma interpretação da lei moldada unicamente para atender a conveniência de condenar pessoas específicas e, indiretamente, atingir o partido a que estão vinculadas.

4. O risco da insegurança jurídica

As decisões do STF, em muitos pontos, prenunciam o fim do garantismo, o rebaixamento do direito de defesa, do avanço da noção de presunção de culpa em vez de inocência. E, ao inovar que a lavagem de dinheiro independe de crime antecedente, bem como ao concluir que houve compra de votos de parlamentares, o STF instaurou um clima de insegurança jurídica no País.

Pairam dúvidas se o novo paradigma se repetirá em outros julgamentos, ou, ainda, se os juízes de primeira instância e os tribunais seguirão a mesma trilha da Suprema Corte.

Doravante, juízes inescrupulosos, ou vinculados a interesses de qualquer espécie nas comarcas em que atuam poderão valer-se de provas indiciárias ou da teoria do domínio do fato para condenar desafetos ou inimigos políticos de caciques partidários locais.

Quanto à suposta compra de votos, cuja mácula comprometeria até mesmo emendas constitucionais, como as das reformas tributária e previdenciária, já estão em andamento ações diretas de inconstitucionalidade, movidas por sindicatos e pessoas físicas, com o intuito de fulminar as ditas mudanças na Carta Magna.

Ao instaurar-se a insegurança jurídica, não perdem apenas os que foram injustiçados no curso da Ação Penal 470. Perde a sociedade, que fica exposta a casuísmos e decisões de ocasião. Perde, enfim, o próprio Estado Democrático de Direito.

5. O STF fez um julgamento político

Sob intensa pressão da mídia conservadora—cujos veículos cumprem um papel de oposição ao governo e propagam a repulsa de uma certa elite ao PT - ministros do STF confirmaram condenações anunciadas, anteciparam votos à imprensa, pronunciaram-se fora dos autos e, por fim, imiscuiram-se em áreas reservadas ao Legislativo e ao Executivo, ferindo assim a independência entre os poderes.

Único dos poderes da República cujos integrantes independem do voto popular e detêm mandato vitalício até completarem 70 anos, o Supremo Tribunal Federal - assim como os demais poderes e todos os tribunais daqui e do exterior - faz política. E o fez, claramente, ao julgar a Ação Penal 470.

Fez política ao definir o calendário convenientemente coincidente com as eleições. Fez política ao recusar o desmembramento da ação e ao escolher a teoria do domínio do fato para compensar a escassez de provas.

Contrariamente a sua natureza, de corte constitucional contra-majoritária, o STF, ao deixar-se contaminar pela pressão de certos meios de comunicação e sem distanciar-se do processo político eleitoral, não assegurou-se a necessária isenção que deveria pautar seus julgamentos.

No STF, venceram as posições políticas ideológicas, muito bem representadas pela mídia conservadora neste episódio: a maioria dos ministros transformou delitos eleitorais em delitos de Estado (desvio de dinheiro público e compra de votos).

Embora realizado nos marcos do Estado Democrático de Direito sob o qual vivemos, o julgamento, nitidamente político, desrespeitou garantias constitucionais para retratar processos de corrupção à revelia de provas, condenar os réus e tentar criminalizar o PT. Assim orientado, o julgamento convergiu para produzir dois resultados: condenar os réus, em vários casos sem que houvesse provas nos autos, mas, principalmente, condenar alguns pela “compra de votos” para, desta forma, tentar criminalizar o PT.

Dezenas de testemunhas juramentadas acabaram simplesmente desprezadas. Inúmeras contraprovas não foram sequer objeto de análise. E inúmeras jurisprudências terminaram alteradas para servir aos objetivos da condenação.

Alguns ministros procuraram adequar a realidade à denúncia do Procurador Geral, supostamente por ouvir o chamado clamor da opinião pública, muito embora ele só se fizesse presente na mídia de direita, menos preocupada com a moralidade pública do que em tentar manchar a imagem histórica do governo Lula, como se quisesse matá-lo politicamente. O procurador não escondeu seu viés de parcialidade ao afirmar que seria positivo se o julgamento interferisse no resultado das eleições.

A luta pela Justiça continua

O PT envidará todos os esforços para que a partidarização do Judiciário, evidente no julgamento da Ação Penal 470, seja contida. Erros e ilegalidades que tenham sido cometidos por filiados do partido no âmbito de um sistema eleitoral inconsistente - que o PT luta para transformar através do projeto de reforma política em tramitação no Congresso Nacional - não justificam que o poder político da toga suplante a força da lei e dos poderes que emanam do povo.

Na trajetória do PT, que nasceu lutando pela democracia no Brasil, muitos foram os obstáculos que tivemos de transpor até nos convertermos no partido de maior preferência dos brasileiros. No partido que elegeu um operário duas vezes presidente da República e a primeira mulher como suprema mandatária. Ambos, Lula e Dilma, gozam de ampla aprovação em todos os setores da sociedade, pelas profundas transformações que têm promovido, principalmente nas condições de vida dos mais pobres.

A despeito das campanhas de ódio e preconceito, Lula e Dilma elevaram o Brasil a um novo estágio: 28 milhões de pessoas deixaram a miséria extrema e 40 milhões ascenderam socialmente.

Abriram-se novas oportunidades para todos, o Brasil tornou-se a 6ª economia do mundo e é respeitado internacionalmente, nada mais devendo a ninguém.

Tanto quanto fizemos antes do início do julgamento, o PT reafirma sua convicção de que não houve compra de votos no Congresso Nacional, nem tampouco o pagamento de mesada a parlamentares. Reafirmamos, também, que não houve, da parte de petistas denunciados, utilização de recursos públicos, nem apropriação privada e pessoal.

Ao mesmo tempo, reiteramos as resoluções de nosso Congresso Nacional, acerca de erros políticos cometidos coletiva ou individualmente.

É com esta postura equilibrada e serena que o PT não se deixa intimidar pelos que clamam pelo linchamento moral de companheiros injustamente condenados. Nosso partido terá forças para vencer mais este desafio. Continuaremos a lutar por uma profunda reforma do sistema político - o que inclui o financiamento público das campanhas eleitorais - e pela maior democratização do Estado, o que envolve constante disputa popular contra arbitrariedades como as perpetradas no julgamento da Ação Penal 470, em relação às quais não pouparemos esforços para que sejam revistas e corrigidas.

Conclamamos nossa militância a mobilizar-se em defesa do PT e de nossas bandeiras; a tornar o partido cada vez mais democrático e vinculado às lutas sociais. Um partido cada vez mais comprometido com as transformações em favor da igualdade e da liberdade.

São Paulo, 14 de novembro de 2012.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Vingando uma camisa


Edberto Ticianeli

Todo menino que aprontou tem uma história para contar envolvendo bicicleta. Não escapo dessa máxima.

Morador da Ponta Grossa, com 12 anos de idade, o meu sonho era ter uma bicicleta. Como as condições da família não permitiam, a solução era alugar uma.

Existiam várias garagens alugando bicicletas na Ponta Grossa, normalmente eram equipamentos velhos e precários. Os seus proprietários tinham um controle rígido sobre o tempo do aluguel: uma hora era uma hora. Os que falhavam eram excluídos do quadro de locatários idôneos e ficavam sem poder alugar bicicletas.

Por essa falta de flexibilidade, eu fui reduzindo as minhas opções de acesso às garagens, até que somente me restou a do “Chupeta”, lá no Vergel, nos fundos do Colégio Municipal. “Chupeta” era o terror dos atrasados. Lá o pagamento era adiantado e a camisa do usuário ficava penhorada como garantia, e ainda sofria a ameaça de passar por um bronzeamento num latão cheio de óleo queimado, caso houvesse atraso.

Durante semanas consegui cumprir o horário estabelecido para devolver a bicicleta, mas sempre tem aquele dia em que você perde a hora. Naquele sábado, corri o que pude para cumprir o acertado, contudo, ao entregar a bicicleta, calmamente o “Chupeta” disse:

— Menino, pegue a sua camisa dentro daquele balde ali.

A raiva era tanta que quando cheguei em casa, a vingança já estava arquitetada. Combinei com alguns amigos os detalhes e, no sábado seguinte, eles foram até o “Chupeta” e locaram quatro bicicletas, pagas por mim. Claro que deixaram camisas velhas, previamente escolhidas para terem um triste fim. Aguardei escondido na esquina do Colégio Municipal. De posse das bicicletas, seguimos pela Avenida Monte Castelo em direção à “pista”, um píer de concreto que recebia os hidroaviões dos anos 20, quando a Lagoa Mundaú era o nosso aeroporto.

A “pista”, durante os sábados à tarde, se transformava numa passarela para os ciclistas da região. Recebia bicicletas ornamentadas e malabaristas das duas rodas. A construção permitia isso, já que avançava lagoa adentro. Conseguir se equilibrar sobre as suas muretas laterais era o maior desafio do local. A “pista” terminava num declive suave, mergulhando na Mundaú.

Chegamos nessa festa com as nossas bicicletas alugadas — uma vergonha para os padrões do local — e fizemos o reconhecimento da área com um breve passeio. Depois disso, nos postamos alinhados e arrancamos em direção à lagoa. Para surpresa de todos, mergulhamos em alta velocidade, levando junto as bicicletas.

Saímos da Mundaú calmamente, deixando lá, para sempre, as bicicletas do “Chupeta”. Minha camisa estava vingada.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Manifesto em Defesa da Civilização

Desempregados em Portugal

A iniciativa de lançar o Manifesto partiu de um grupo de economistas da Unicamp, diante do que eles consideram "uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática".

O documento analisa ainda que "o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar restrito para uma ínfima parte", e desafia: "É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização".


MANIFESTO EM DEFESA DA CIVILIZAÇÃO

Vivemos hoje um período de profunda regressão social nos países ditos desenvolvidos. A crise atual apenas explicita a regressão e a torna mais dramática. Os exemplos multiplicam-se. Em Madri uma jovem de 33 anos, outrora funcionária dos Correios, vasculha o lixo colocado do lado de fora de um supermercado. Também em Girona, na Espanha, diante do mesmo problema a Prefeitura mandou colocar cadeados nas latas de lixo. O objetivo alegado é preservar a saúde das pessoas.

Em Atenas, na movimentada Praça Syntagma situada em frente ao Parlamento, Dimitris Christoulas, químico aposentado de 77 anos, atira contra a própria cabeça numa manhã de quarta-feira. Na nota de suicídio ele afirma ser essa a única solução digna possível frente a um Governo que aniquilou todas as chances de uma sobrevivência civilizada. Depois de anos de precários trabalhos temporários o italiano Angelo di Carlo, de 54 anos, ateou fogo a si próprio dentro de um carro estacionado em frente à sede de um órgão público de Bologna.

Em toda zona do euro cresce a prática medieval de anonimamente abandonar bebês dentro de caixas nas portas de hospitais e igrejas. A Inglaterra do Lord Beveridge, um dos inspiradores do Welfare State, vem cortando recorrentemente alguns serviços especializados para idosos e doentes terminais. Cortes substantivos no valor das aposentadorias e pensões constituem uma realidade cada vez mais presente para muitos integrantes da chamada comunidade europeia. Por toda a Europa, museus, teatros, bibliotecas e universidades públicas sofrem cortes sistemáticos em seus orçamentos. Em muitas empresas e órgãos públicos é cada vez mais comum a prática de trabalhar sem receber. Ainda oficialmente empregado é possível, ao menos, manter a esperança de um dia ter seus vencimentos efetivamente pagos. Em pior situação está o desempregado. Grande parte deles são jovens altamente qualificados.

A massa crescente de excluídos não é um fenômeno apenas europeu. O mesmo acontece nos EUA. Ali, mais do que em outros países, a taxa de desemprego tomada isoladamente não sintetiza mais a real situação do mercado de trabalho. A grande maioria daqueles que hoje estão empregados ocupam postos de trabalhos precários e em tempo parcial concentrados no setor de serviços. Grande parte dos postos mais qualificados e de melhor remuneração da indústria de transformação foram destruídos pela concorrência chinesa.

Nesse cenário, a classe média vai sendo espremida, a mobilidade social é para baixo e o mercado de trabalho vai ficando cada vez mais polarizado no país das oportunidades. No extremo superior, pouquíssimos executivos bem remunerados que têm sua renda diretamente atrelada ao mercado financeiro. No extremo inferior, uma massa de serviçais pessoais mal pagos sem nenhuma segurança, que vivem uma realidade não muito diferente dos mais de 100 milhões que recebem algum tipo de assistência direta do Estado. O Welfare State, ao invés de se espalhar pelo planeta, encampando as tradicionais hordas de excluídos, encolhe, aumentando a quantidade de deserdados.

Muitos dirão que essa situação será revertida com a suposta volta do crescimento econômico e a retomada do investimento na indústria de transformação nestes países. Não é verdade. É preciso aceitar rapidamente o seguinte fato: no capitalismo, o inevitável avanço do progresso tecnológico torna o trabalho redundante. O exponencial aumento da produtividade e da produção industrial é acompanhado pela constante redução da necessidade de trabalhadores diretos. Uma vez excluídos, reincorporam-se – aqueles que o conseguem – como serviçais baratos dentro de um circuito de renda comandado pelos detentores da maior parcela da riqueza disponível. Por isso mesmo, a crescente desigualdade de renda é funcional para explicar a dinâmica desse mercado de trabalho polarizado.

Diante desse quadro, uma pergunta torna-se inevitável: estamos nós, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? E se isso for verdade: quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão?

A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os bens essenciais para as satisfações das necessidades humanas imediatas. Diante dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice, etc. Numa expressão, escassez de bem estar!

Um bem estar que marcou os conhecidos “anos dourados” do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão pós 1929, nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem Estar Social. Os direitos garantidos pelo Estado não deveriam ser apenas individuais, mas também coletivos. Vale dizer: sociais. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o direito à saúde, à previdência, à habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados, milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos outros eram criados.

O Welfare State não pode ser interpretado como uma mera reforma do capitalismo, mas sim como uma grande transformação econômica, social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade. O individuo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. No entanto, as gerações que cresceram sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram por naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de Mal Estar Social!

Essa regressão social começou quando começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 70. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída pela ética da concorrência ou do desempenho. É o seu desempenho individual no mercado que define sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria das pessoas seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por acaso o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não por acaso, grande parte da população espanhola está indignada.

Mesmo em um país como o Brasil, a despeito dos importantes avanços econômicos e sociais recentes, a outrora chamada “dívida social” ainda é enorme e se expressa na precariedade que assola todos os níveis da vida nacional. Não se pode ignorar que esses caminhos tomados nos países centrais terão impactos sob essa jovem democracia que busca, ainda, universalizar os direitos de cidadania estabelecidos nos meados do século passado nas nações desenvolvidas.

Como então acreditar que precisamos escolher entre o caos e austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos do 1% detentor de carteiras de títulos financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à cultura?

As respostas para tais questões não serão encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade.

A civilização precisa ser defendida! As promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a liberdade de se auto-realizar. Algo impensável para o homem que precisa preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material. Isso implica numa selvageria que deveria ficar restrita, por exemplo, a uma alcateia de lobos ferozes. Ao longo dos últimos de 200 anos de história do capitalismo, o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem estar de um só é possível quando os demais à sua volta encontram-se na mesma situação. Caso contrário, a reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização.

Assinaturas

DAVI DONIZETI DA SILVA CARVALHO
EDUARDO FAGNANI
CAMILA LINHARES TEIXEIRA
CLAUDIO LEOPOLDO SALM
MILTON LAHUERTA
EDSON CORREA NUNES
MIRIAM DOMINGUES
WILMA PERES COSTA
NEIRI BRUNO CHIACHIO
NATÁLIA MINHOTO GENOVEZ
PEDRO GILBERTO ALVES DE LIMA
SAMIRA KAUCHAKJE
FABIO DOMINGUES WALTENBERG
ALICIA UGÁ
JULIANO SANDER MUSSE
AMÉLIA COHN
LIGIA BAHIA
MAGDA BARROS BIAVASCHI
FABRÍCIO AUGUSTO DE OLIVEIRA
ANTONIO CARLOS ROCHA
RODRIGO PEREYRA DE SOUSA COELHO
GABRIEL QUELHAS DE ALMEIDA
MARIENE GONÇALVES TUNG
AMILTON MORETTO
ANA AURELIANO SALM
MARCIO SOTELO FELIPPE
FREDERICO MAZZUCCHELLI
CELIO HIRATUKA
EDUARDO BARROS MARIUTTI
ANGELA MOULIN SIMÓES PENALVA SANTOS
ANGELA MARIA CARVALHO BORGES
JOÃO MIRANDA SILVA FAGNANI
RODOLFO AURELIANO SALM
EVA LUCIA SALM
ÉDER LUIZ MARTINS
FERNANDA MAZZONI DE OLIVEIRA
MICHELLE MAUREN DOVIGO CARVALHO
FELIPE LARA CIOFFI
ALOISIO SERGIO ROCHA BARROSO
RONEY MENDES VIEIRA
NAIRO JOSÉ BORGES LOPES
MARIA FERNANDA CARDOSO DE MELO
WILSON CANO
NEREIDE SAVIANI -
FREDERICO LOPES NETO
MARIA DE FÁTIMA BARBOSA ABDALLA
BRANCA JUREMA PONCE
LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO
ALAN GUSMÃO SILVA
JOSE ANTONIO MORONI
VANESSA CRISTINA DOS SANTOS
JOSÉ CLAUDINEI LOMBARDI
EDSON DONIZETTI XAVIÉR DE MIRANDA
MARIA EDUARDA PAULA BRITO DE PINA
MARIA DE FATIMA FELIX ROSAR
CÁSSIA HACK
DERMEVAL SAVIANI
ROBSON SANTOS DIAS
RODRIGO TAVORA GADELHA
JORGE LUIZ ALVES NATAL
LUCIANO VIANNA MUNIZ
ALUIZIO FRANCO MOREIRA
MARISE VIANNA MUNIZ
JURACI COLPANI
ALESSANDRO CESAR ORTUSO
GENILDO SIQUEIRA
CARLOS EDUARDO DE FARIAS
CARLOS ALONSO BARBOSA DE OLIVEIRA
JOSE DAMIRO DE MORAES
FERNANDO MOREIRA MORATO
CELSO JOÃO FERRETTI
SILVIA ESCOREL DE MORAES
DANIEL ARIAS VAZQUEZ
EVERTON DAB DA SILVA
JOÃO GABRIEL BARRETO SILVA ROCHA
CELSO EUGÊNIO BRETA FONTES
SARAH ESCOREL
VINICIUS GASPAR GARCIA
DENIS MARACCI GIMENEZ
DENISE DO CARMO SILVA PEREIRA
JEFFERSON CARRIELLO DO CARMO -
VAGNER SILVA DE OLIVEIRA
GABRIEL PRIOLLI
JÉSSICA MARCON DALCOL
MARINA VENÂNCIO GRANDOLPHO
PEDRO HENRIQUE DE MELLO LULA MOTA
DANIEL SANTIAGO MOREIRA
VANESSA MORAES LUGLI
SANDRA MARIA DA SILVA LIMA
CARLOS RAFAEL LONGO DE SOUZA
MARIA SILVIA POSSAS
LUCIANA RAMIREZ DA CRUZ
CAROLINA PIGNATARI MENEGHEL
PEDRO DOS SANTOS PORTUGAL JÚNIOR
JOSÉ AUGUSTO GASPAR RUAS
WELLINGTON CASTRO DOS SANTOS
ALESSANDRO FERES DURANTE
DANIEL HERRERA PINTO
PEDRO HENRIQUE VERGES
DAVI JOSÉ NARDY ANTUNES
CARLA CRISTIANE LOPES CORTE
CARLOS ALBERTO DRUMMOND MOREIRA
DANIEL DE MATTOS HÖFLING
MARCELO WEISHUPT. PRONI
ENIO PASSIANI
JOSÉ DARI KREIN
ANSELMO LUIS DOS SANTOS
FABIO EDUARDO IADEROZZA
HIGOR FABRÍCIO DE OLIVEIRA
DANER HORNICH
HELDER DE MELO MORAES
JOSE EDUARDO DE SALLES ROSELINO JUNIOR
JULIANA PINTO DE MOURA CAJUEIRO
FERNANDO CATALANI
FERNANDA PIM NASCIMENTO SERRALHA
LEANDRO PEREIRA MORAIS
MARCELO PRADO FERRARI MANZANO
OLIVIA MARIA BULLIO MATTOS
RENATO BROLEZZI
LUCAS JANNONI SOARES
MÁRCIO SAMPAIO DE CASTRO
MARIA PINON PEREIRA DIAS
LUIZ MORAES DE NIEMEYER NETO
RODRIGO COELHO SABBATINI
LÍCIO DA COSTA RAIMUNDO
FERES LOURENÇO KHOURY

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Memória da Flor: uma homenagem a Zé Paulo

Edberto Ticianeli
Zé Paulo na redação do Jornal de Alagoas

O ano era 2009, mas não me recordo do mês. Abro a caixa de e-mail e lá está uma mensagem do Zé Paulo, com mais uma das suas poesias. Começo a ler e descubro que não é mais uma poesia: é uma bela poesia,e com cara de letra de musica.

Como o Júnior Almeida já tinha gravado alguma coisa do Zé Paulo, encaminhei a mensagem para ele, comentando que aquele material tinha tudo para ser uma música. Minutos depois recebi um telefonema do Júnior Almeida:

— Estou aqui arrepiado com a poesia do Zé Paulo. A música está pronta na minha cabeça e assim que terminar eu mostro pra você.

Tempos depois eu recebi a Memória da Flor (veja no Youtube), mais um belo trabalho do Júnior, que, para mim, soa como uma homenagem ao Zé Paulo. “Memória da Flor” está no último CD de Júnior Almeida e dá nome ao disco e ao show, que acontecerá neste sábado, às 21 h, no Teatro Gustavo Leite – Centro de Convenções de Maceió.

Mas quem é esse Zé Paulo?

Conheço José Paulo da Silva Ferreira, Zé Paulo para os mais próximos, há muito tempo. Além de conterrâneo, lá de Pão de Açúcar — onde nasceu no dia 29 de junho de 1962 —, estivemos juntos na militância política no início dos anos 80. Zé Paulo frequentava regularmente a nossa casa, principalmente pela amizade com o meu irmão, o Etenio.

Nessa época, ele já produzia suas poesias, que eram publicadas nos jornais estudantis, como o Semente — jornalzinho dos estudantes universitários de Pão de Açúcar e editado por Etevaldo Amorim. A poesia abaixo foi publicada na edição de novembro de 1980, e traduzia o clima da luta contra a Ditadura Militar.

Metamorfose
Março de 1981. Estudantes secundaristas invadem a a Secretaria de Educação.
Zé Paulo está de boné, no alto à direita. 

Não se pode fugir
do açoite,
da noite
   Mas se pode trazer
   uma lanterna
   muito acessa.

Pode-se dizer não
ao sistema 
que se vai
É preciso dizer não
com força,
com garra,
com toda a certeza
de quem sabe da fé
em uma nova vida.

É preciso saber que
o novo homem nasce
ASSIM.

A Coletânea Caeté do Poema Alagoano, lançada em 1987 pela Secretaria de Cultura de Alagoas, publica uma das poesias de Zé Paulo. Mas, o primeiro trabalho premiado dele foi “A incrível prisão de Rui de Castro”, escolhida para ser publicada no “I Concurso de Poesia Falada”, promovido pela Fundação Cultural Cidade de Maceió, em 1997. Esta é considerada por muitos críticos como uma das melhores poesias da última década do século XX em Alagoas.
Igeja Matriz em Pão de açúcar. Foto de Duan Cícero.

A incrível prisão de Rui de Castro

Numa cidade pequena, 
as moscas estão muito próximas das pessoas.
Rui não está embriagado no bar central, 
com os olhos de molho no copo seco,
molhado de espuma seca,
ouvindo músicas ao violão deserdado de Etênio, 
o ex-hippie, porque Rui está em casa 
com os olhos molhados, enfiados num livro sem fim .
E, se acaba, botam-lhe outro entre as mãos e o cérebro, 
um pouco ante os olhos molhados 
de alguma coisa feito solidão.

Rui não está na calçada da igreja local, 
ouvindo as taras da juventude local, 
entre umas pernas e outras das moças passando
após as conversas com o padre,
morrendo de medo das moças fantasiadas 
morrendo donzelo, culpado, 
enfiando-se na alta calçada de cimento 
querendo sumir por baixo da porta.

Rui não está lá, nem na porta da farmácia,
onde velhos e novos fazendeiros contam os bezerros
vacinados ontem por medo da febre aftosa
e vomitaria nas botas novas dos senhores proprietários 
porque Rui de Castro está em casa, 
sem peito para nada, sem jeito para nada.

Rui de Castro não passeia pelas ruas pequenas, 
malfeitas, porém belas, 
por simples horror dos cumprimentos efusivos
ou não efusivos.
Basta apenas um alô para desconsertá-lo 
e pô-lo em fuga dolorida, a alma exposta pelo avesso;
assim, ultra-sensível ao vento dos lábios
de quem quer que seja mais.

Ele era um rapaz da cultura ou contracultura;
aprendeu inglês ouvindo os Beatles mas,
eu não sei quando nem como,
alguma coisa de humano se perdeu e mora, cara, 
numa cidade tão mínima cabendo toda neste poema.

E Rui nunca mais foi ao rio porque Rui, há muito tempo,
é um rio correndo inexorável para dentro do mar,
com a desvantagem de ser um rio sem margem.

Em 2001, Júnior Almeida grava a música “República da Rocinha”, a partir de uma poesia de Zé Paulo. É a quarta faixa do CD “Dias de Calor”.

Zé Paulo escolheu, como o Rui de Castro do seu poema, morar em Pão de Açúcar. Continuo a receber, semanalmente, algum trabalho seu e, atento, garimpo no meio de tanta coisa boa para ver se encontro outra pedra preciosa.

domingo, 14 de outubro de 2012

As dez estratégias da mídia para manipular as massas


Noam Chomsky
O linguista Noam Chomsky(*) elaborou uma lista das “10 estratégias de manipulação através dos meios de comunicação de massa”.


A seguir veremos em que consistem as 10 estratégias de maneira detalhada, como influem na hora de manipular as massas e em que são baseadas.

1. A estratégia da Distração:

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio, ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir o público de interessar-se por conhecimentos essenciais, nas áreas da ciência, economia, psicologia, neurobiologia e cibernética. “Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais”

2. Criar problemas e depois oferecer soluções.

Este método também é chamado “problema-reação-solução”. Se cria um problema, uma “situação” prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou que se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas desfavoráveis à liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3. A estratégia da gradualidade.

Para fazer que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradualmente, a conta-gotas, por anos consecutivos. Foi dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4. A estratégia de diferir.

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como “dolorosa e necessária”, obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais difícil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato.

Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Depois, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que “amanhã tudo irá melhorar” e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se à ideia da mudança e aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5. Dirigir-se ao público como crianças.

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse uma criança de pouca idade ou um deficiente mental. Quanto mais se tenta enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê? “Se alguém se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como as de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade.”

6. Utilizar o aspecto emocional muito mais do que a reflexão.

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e finalmente no sentido crítico dos indivíduos. Por outro lado, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou injetar ideias, desejos, medos e temores, compulsões ou induzir comportamentos.

7. Manter o público na ignorância e na mediocridade.

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. “A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores e as classes sociais superiores seja e permaneça impossível de ser revertida por estas classes mais baixas.

8. Estimular o público a ser complacente com a mediocridade.

Promover ao público a crer que é moda o ato de ser estúpido, vulgar e inculto.

9. Reforçar a autoculpabilidade.

Fazer com que o indivíduo acredite que somente ele é culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, no lugar de se rebelar contra o sistema econômico, o indivíduo se auto desvaloriza e se culpa, o que gera um estado depressivo, cujo um dos efeitos é a inibição de sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10. Conhecer aos indivíduos melhor do que eles mesmos se conhecem.

No transcurso dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado uma crescente brecha entre os conhecimentos do público e aqueles possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, a neurobiologia a psicologia aplicada, o “sistema” tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto em sua forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos, maior que o dos indivíduos sobre si mesmos.

Assustador?

Fonte: Blog Brasil a Rua é Nossa

(*) Linguista, filósofo e ativista político norte-americano, NOAM CHOMSKY (84 nos) é considerado o  mais importante intelectual vivo, que se descreve como um socialista libertário, crítico veemente da política externa dos Estados Unidos.  Suas obras contribuem decisivamente para a formação da psicologia cognitiva, no domínio das ciências humanas.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Corno sob a Teoria do Domínio do Fato


EdbertoTicianeli

As expressões famosas sobre os brasileiros foram enriquecidas com mais uma criação da sabedoria popular.

Depois de ter Deus como compatriota e ser considerado como o melhor técnico de futebol do mundo, o brasileiro agora também é tratado como jurista. Um avanço enorme para nós, já que esta é uma área do saber que exige muito estudo.

Mas, como não se estuda muito neste país, o curso foi intensivo e a distância, pela televisão. A metodologia utilizada foi um estudo de caso: o Mensalão - opa, falha nossa, jurista popular não fala assim –, o correto é Ação Penal 470.

A partir de agora vai ser comum encontrar em mesa de bar vários juristas a discutirem a Teoria do Domínio do Fato, aquela que permite punir sem provas.

Imagine o debate no Bar do Roberto Ladrão, no Poço.

- Zé Dirceu mereceu ser punido. Ele foi o chefe do Mensalão – argumenta o jurista atacante.

- Mas não tem nenhuma prova contra ele – responde o jurista zagueiro.

- E precisa? Agora o que vale é a Teoria do Domínio do Fato: se parece que é, então é.

- Se for assim eu posso afirmar que você é corno.

- Você está me desrespeitando. Se você não provar o que diz, vai pagar caro por isso.

- Eu não preciso provar nada: você é corno sob a luz da tal Teoria do Domínio do Fato que você mesmo defendeu.

- Como assim?

- Data máxima vênia, me responda: onde está sua mulher agora?

- Não sei. Deve ter ido para o dentista ou fazer compras no shopping.

- Se você não sabe onde anda a sua mulher, posso concluir que você está pedindo para levar galha, o que caracteriza uma intencionalidade. Isso me permite dizer que você é corno sem que eu tenha que provar nada.

- Eu não concordo com isso.

- Então recorra ao Supremo, cormo amigo.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O imperativo do protecionismo em defesa do interesse nacional


A marca registrada universal da submissão ao colonialismo é quando o colonizado assume como seu e passa a defender o ponto de vista do colonizador. Viu-se isso com todas as letras e cores no Jornal Nacional da semana passada quando o comentarista Carlos Alberto Sardenberg analisou uma troca de notas de protesto entre o Governo americano e o Governo brasileiro. O artigo é de J. Carlos de Assis.

J. Carlos de Assis - Carta Maior

A marca registrada universal da submissão ao colonialismo é quando o colonizado assume como seu e passa a defender o ponto de vista do colonizador. Viu-se isso com todas as letras e cores no Jornal Nacional da semana passada quando o comentarista Carlos Alberto Sardenberg analisou a troca de notas de protesto entre o Governo americano e o Governo brasileiro, o primeiro reclamando da elevação pelo Brasil de tarifas de importação sobre 100 produtos e o segundo condenado a nova leva, a terceira, de inundação de dólares no mercado mundial sob o eufemismo de Facilitação Quantitativa.

O comentarista da Globo desenvolveu o seguinte raciocínio: a nova inundação de dólares – acompanhada, de resto, pelo Banco Central Europeu e pelo Banco do Japão – é um legítimo recurso do Governo norte-americano, assim como dos demais países industrializados avançados, para relançar suas economias titubeantes. Já a elevação de tarifas alfandegárias pelo Brasil não passa de puro protecionismo resultante de um fraco grau de competividade. Assim, o Governo Obama tem razão em acusar a medida brasileira de protecionista, na medida em que ela distorce as virtualidades do mercado livre.

Sou, em geral, simpático ao Governo Dilma, como fui, pelo menos depois de sua guinada desenvolvimentista por volta de 2006, do Governo Lula. Entretanto, nesse caso específico, quero me declarar peremptoriamente como um fanático pelas decisões corajosas de nossa Presidenta. Tenho defendido no Intersul, instituto que presido, o imperativo de um acordo com nossos vizinhos sul-americanos para levantar conjuntamente nossas barreiras tarifárias e articular simultaneamente programas de investimentos e de desenvolvimento, tendo em vista o risco que representa para nós as políticas econômicas dos países ricos.

De fato, na medida em que, depois da reunião do G-20 em Toronto em 2010, esses países optaram pelo que chamam de políticas de austeridade fiscal, os governos europeus dominados pela troika – Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI – deliberadamente decidiram retrair seu mercado interno para gerar excedentes exportáveis. É pelas exportações que pretendem sair da crise. Como esse é o objetivo dos Estados Unidos e do Japão, a pergunta óbvia é: exportar para quem? E a resposta também óbvia é: para os países emergentes, inclusive para nós, Brasil. De fato, no último ano, exportamos menos para a Europa e importamos mais dos Estados Unidos, com que fizemos um déficit de US$ 8 bilhões.

Portanto, quando assume o ponto de vista do Governo americano no caso da nota nos acusando de protecionismo, o comentarista da Globo toma o partido de uma política econômica que, a exemplo da europeia, confia exclusivamente nas exportações, e não no mercado interno, como saída da crise. A decisão do Fed de inundar o mundo de dólares é uma espécie de último recurso já que o Partido Republicano, dominante na Câmara, não deixou Obama fazer um segundo programa de estímulo fiscal de mais de US$ 400 bilhões em 2010. Com isso, o instrumento alternativo restante de política econômica foram as tais “Facilidades Quantitativas” pelo Fed.

Já que a política interna americana não permite que o país adote uma política econômica decente, não é justo que nós, países em desenvolvimento, arquemos com suas consequências, quaisquer que sejam. A corajosa medida brasileira de elevação de tarifas (até 25%) dentro das regras da OMC (Organização Mundial do Comércio) corresponde inteiramente ao interesse nacional. Os que me honram com sua leitura sabem que mais de uma vez critiquei o ministro Mantega, eventualmente por falta de uma ação firme no comando da economia, mas desta vez faço questão de cumprimentá-lo: a meu ver o caminho é justamente esse.

O próximo passo, espero, é uma empreitada do Itamarati para que nossos vizinhos sul-americanos sejam convencidos do imperativo de uma política comum de investimentos-chave em áreas estruturantes da integração regional. Minha sugestão é que comecemos por um Pacto Siderúrgico, um Pacto de Energia Elétrica e um Pacto Rodoviário. Se erguermos conjuntamente um conjunto de tarifas externas comuns, e ao mesmo tempo estabelecermos as bases para investimentos integrados a partir destes – mas não necessariamente só nestes – setores, podemos realizar, no meio da crise mundial, o sonho da integração sul-americana, melhorando sensivelmente os níveis de bem-estar social em nossa região.

(*) Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor do recém-lançado “A Razão de Deus”, pela Editora Civilização Brasileira. Esta coluna sai também nos sites Rumos do Brasil e Brasilianas, e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

“Transformação” do PT gera polêmica em simpósio de História


Discordâncias sobre o caráter dos governos Lula e Dilma marcaram a mesa “Do petismo ao lulismo: o PT ontem e hoje”, uma das que abriram o Simpósio Internacional Esquerda na América Latina: História, Presente, Perspectivas, que acontece na USP. Todos concordaram que o PT mudou, mas enquanto André Singer defendeu as políticas sociais das gestões Lula e Dilma como cumpridoras de parte do programa original do partido, Cyro Garcia e Tales Ab’Saber condenaram o lulismo por, segundo eles, beneficiar grandes grupos econômicos.

São Paulo - Discordâncias sobre o caráter dos governos Lula e Dilma marcaram a mesa “Do petismo ao lulismo: o PT ontem e hoje”, uma das que abriram o Simpósio Internacional Esquerda na América Latina: História, Presente, Perspectivas, que acontece a partir desta terça-feira (11) até a próxima quinta-feira (13) no campus da Universidade de São Paulo (USP). A programação do evento, promovido pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, pode ser conferida no endereçohttp://www.esquerdaamlatina.fflch.usp.br/node/1.
 
Participaram da mesa “Do petismo ao lulismo” o cientista político e jornalista André Singer, ex-porta voz de Lula; Cyro Garcia, presidente do PSTU-RJ e membro da central sindical Conlutas; e o psicanalista Tales Ab’Saber. De maneira geral, Singer fez críticas ao processo de “transformação” do PT – principalmente, a partir de 2002, segundo ele – e buscou defender as políticas sociais adotadas por Lula e Dilma. Garcia e Ab’Saber, por sua vez, condenaram as gestões petistas por, segundo eles, beneficiarem os grandes grupos econômicos.

Em sua exposição, André Singer afirmou que o PT surgiu como um partido de natureza radical mais significativa que seu caráter socialista. “Na história política do Brasil, há uma longa tradição de conciliação pelo alto. O PT se propôs a ser um partido radical a partir dessa leitura. Foi uma novidade a existência de um partido legal e abertamente radical. Numa cultura política avessa ao confronto, se apresenta como um partido que quer romper com a ordem. A segunda novidade e que deu certo: ganhou o apoio dos movimentos sociais desde o início”. 

O cientista político listou três evidências concretas do radicalismo do PT durante os anos 1980, que se traduziu em três recusas: a primeira, a votar em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 1985, após a derrota das Diretas Já; a segunda, a votar a favor da Constituição de 1988; a terceira, o rechaço ao apoio do PMDB no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, por este ser um partido burguês.

“Minha hipótese é que o PT arquivou esse radicalismo em 2002. Tomou a direção da moderação. Para mim, foi de repente, embora se olharmos com lupa os anos 1990 podemos perceber indícios disso. No entanto, publicamente, nos anos 1990 ainda não estava mudando. Em 2002, a mudança foi abrupta, com a assinatura da Carta ao Povo Brasileiro, que em seguida foi incorporada ao programa de governo do Lula. O que estava lá? Um conjunto de garantias ao capital de que o PT não faria um governo de ruptura. Foi uma mudança de fundo. De um partido de confronto para um partido de não confronto com o capital”, analisou.

Para Singer, o lulismo é a implementação na prática dessa nova política, mas com uma característica incomum: simultaneamente, a ativação de um mercado interno “por baixo”. “Foram executadas políticas de combate à pobreza capazes de ativar o mercado interno e diminuir a desigualdade social, cumprindo uma parte importante do programa original do partido.”

Segundo o ex-porta voz de Lula, essa realidade configurou, em 2006, uma nova base social de eleitores para o PT: adesão de setores de baixa e baixíssima renda e afastamento dos eleitores de classe média. “Hoje, o PT, que era um partido da classe média, é um partido popular. Por causa disso, é muito forte, e essa realidade, somada à capilaridade que acumulou ao longo dos anos, fará com que sua hegemonia dure por muito tempo.”

O presidente do PSTU-RJ, Cyro Garcia, autor do livro PT: de oposição à sustentação da ordem, discordou de Singer quanto ao momento da mudança do caráter do PT. Para ele, a transformação do partido em uma agremiação “da ordem” começou a ocorrer em 1988, quando conquistou as eleições em várias cidades importantes do país. “A partir daí, o PT passa por um processo de profunda burocratização – incrusta-se no aparato estatal burguês. O Congresso do partido de 1991 consolida um projeto reformista. Em 1992, expulsou a Convergência Socialista por defender o ‘Fora Collor’, avaliando que o mesmo tipo de mobilização poderia ser usado contra o Lula em seguida, pois tinham a esperança de que ele ganharia em 1994. Em 1994, passa a aceitar doações de pessoas jurídicas. A Carta ao Povo Brasileiro é o corolário dessas mudanças. O PT abandona o caráter classista e passa a defender o ‘cidadão’”, analisou. 

Para Garcia, o PT tinha um caráter mais classista que radical, já que era formado por setores da Igreja Católica, grupos que haviam participado da luta armada contra a ditadura, organizações trotskistas e, sobretudo, o novo sindicalismo. “O slogan de campanha era: ‘Vote no 3, o resto é burguês’. Sua característica principal era a ruptura da ordem.” Segundo o integrante do PSTU, o partido obteve um crescimento eleitoral progressivo ao longo da década de 1980 sem fazer concessões, contrariando, de acordo com ele, a tese de que uma agremiação de esquerda precisa ceder espaço para a burguesia se quiser ganhar eleições.

Na opinião de Garcia, o governo Lula se beneficiou de uma conjuntura econômica mundial favorável para executar uma política assistencialista que serviu, segundo ele, para manter a pobreza no país. “É uma política para se locupletar da pobreza. Por isso é o partido dos pobres, para que estes continuem votando no PT. Dá o peixe para que continuem dependentes.”

Segundo o integrante do PSTU, não houve distribuição de renda durante as gestões petistas, mas “concentração de renda”. “Tem muito dinheiro a banqueiros, empreiteiras. Um estudo mostrou que de cada real doado ao PT, as empreiteiras têm um retorno de R$ 8,50. É um investimento tranquilo, não é mesmo?”

Em sua exposição, o psicanalista Tales Ab’Saber explicou os principais eixos do seu livro Lulismo, cultura pop e cultura anticrítica. Segundo ele, as gestões petistas deram um passo na direção do favorecimento dos grandes grupos econômicos, estabelecendo um pacto social entre os extremos e uma inclusão social por meio do consumo. “Consumo como centro da própria subjetivação social e política”. Para Ab’Saber, “Lula comandou um grande processo de aceitação da hegemonia do mercado”.

“Houve uma celebração do aquecimento econômico, que pouco alterou a condição de vida concreta. O lastro real deve ser encontrado na expansão brutal das commodities brasileiras e na descoberta de novos campos de petróleo, que se traduzem em negócios futuros garantidos”, opinou. Para ele, após a eclosão da crise econômica internacional, o governo Lula passou a ser visto como um modelo conservador que pode reorganizar uma retomada do capitalismo. “Por isso o Obama chamou o Lula de ‘o cara’. É um modelo edulcorado pela redenção do PT às práticas tradicionais. A gestão política foi entregue à direita política”, defendeu. Para Ab’Saber, toda essa política foi mediada pela figura carismática de Lula, um “ídolo pop”.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Quem ganha?


por Marcos Coimbra, no Correio Braziliense

Com sua proverbial dificuldade de compreender os sentimentos do cidadão comum, os analistas da “grande imprensa” imaginaram um desfecho para as eleições deste ano que a realidade está desmentindo.

A hipótese central com que trabalhavam era que, especialmente nas principais capitais, o julgamento do “mensalão” desgastaria o PT e os partidos da base do governo. Inversamente, que beneficiaria os candidatos da oposição.

O palco por excelência de confirmação da tese seria São Paulo. Lá, achavam que o “primeiro ato” da sucessão presidencial de 2014 iria ocorrer e que o resultado seria desfavorável aos petistas.

Combalido pelo “mensalão”, Lula veria seu indicado perder para José Serra, natural depositário dos sentimentos de rejeição ao PT aguçados pelo julgamento.

E esse seria apenas o caso mais fulgurante de um conjunto de derrotas do “lulopetismo”. Nas grandes cidades, a oposição sairia fortalecida.

Mas é exatamente em São Paulo que estamos constatando que a realidade é diferente. Lá, nada disso acontece.

Se o “mensalão” joga algum papel na eleição, não é o que esperavam.

Só quem pouco conhece o modo como a maioria das pessoas concebe a vida política suporia que elas iriam acreditar no enredo sobre o “mensalão” que lhe é oferecido diariamente pela mídia.

Que existe um lado “mau” — onde estão o PT, suas lideranças e aliados –, e um lado “bom” — onde ficam os que querem vê-los pelas costas. Que os “maus” são responsáveis por coisas horrorosas, que os “bons” jamais praticam.

Não é assim que pensam as pessoas normais. Elas sabem que essa história tem tanta verossimilhança quanto os antigos filmes de caubói.

Por maior que tenha sido o esforço de alguns de nossos jornais de particularizar as culpas do “mensalão”, por mais que tenham tentado circunscrevê-lo e delimitá-lo (por exemplo, o destacando como “o maior escândalo de todos os tempos”), não conseguiram.

Como mostram as pesquisas, naquilo que a vasta maioria da população considera relevante, ele nada tem de único, de especialmente grande ou de característico de petistas e aliados.

O que a ênfase extraordinária no assunto acabou por provocar foi o aumento da “taxa geral de desconfiança” da opinião pública contra o sistema político.

Ela não ficou mais desconfiada do PT. Mas dos partidos e dos políticos de forma indistinta.

O momento que vivemos tem certa semelhança com o que aconteceu na véspera de outra eleição municipal, a segunda do Brasil moderno. Em 1988, escolhemos prefeitos em meio a uma crise de confiança da sociedade em relação ao sistema político.

A sensação de que o governo Sarney era incompetente na luta contra a inflação, que a corrupção corria solta, que os políticos só se preocupavam com seus interesses pessoais, levou o eleitorado de várias cidades a apostas de risco. O desconhecido ficou atraente.

No ano seguinte, elegemos Fernando Collor.

Os tempos são — ainda bem! — outros. Graças à sensação de que no Planalto está um governo que responde adequadamente aos desafios e é sensível ao que a maioria deseja.

É claro, também, que cada um é cada um. Mas não deixa de ser curioso o paralelo: a atração por “políticos diferentes” aumenta na razão direta da percepção de que o sistema político é inconfiável.

Celso Russomano é expressão do fenômeno. E é irônico que a maior vítima do antipetismo esteja sendo seu principal avatar.

PS. Em Curitiba, lidera Ratinho Junior, do PSC. Na televisão, faz questão de se apartar dos “políticos tradicionais”.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Comissão da Verdade em Pernambuco recebe os primeiros depoimentos


Padre Ernane Pinheiro revela detalhes sobre o trucidamento do padre Antonio Henrique Pereira Neto

Edberto Ticianeli
Padre Antonio Henrique Pereira Neto

No momento que o Brasil ainda discute sobre o papel da Comissão da Verdade, vale a pena conhecer o depoimento do padre Ernanne Pinheiro.
Ele relata em Pernambuco, para a Comissão da Verdade e da Memória Dom Helder Camara, a historia do trucidamento do padre Antonio Henrique Pereira Neto, ocorrido no dia 27 de maio de 1969, em Recife.
Em Alagoas, o governador sancionou a lei de autoria do deputado Judson Cabral (PT), que cria a Comissão da Verdade. Agora se aguarda a nomeação dos seus componentes para vermos se o seu trabalho pode revelar casos como este exposto no comovente depoimento do padre Ernanne Pinheiro.

Exmo. Sr Dr. Fernando Coelho, presidente da Comissão,
Exmo. Sr. Dr. Pedro Eurico, relator do caso Padre Henrique na Comissão,
Demais membros da Comissão da Verdade e da Memória,
Meus Senhores e minhas Senhoras,

Meu depoimento perante esta significativa Comissão é eclesial. No período, eu exercia o cargo de Vigário Episcopal dos Leigos na Arquidiocese de Olinda Recife e como tal fui nomeado pelo arcebispo Dom Helder Camara, na missa de corpo presente, o sucessor do padre Henrique para dar continuidade aos trabalhos da Pastoral de Juventude.

Vou tentar organizar minha reflexão em cinco partes:

1. Quem era o Padre Henrique e como realizava o trabalho pastoral;
2. O contexto da Igreja em Olinda e Recife no período;
3. O bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique;
4. A morte do padre Antonio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife;
5. As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes.

1. Quem era Padre Antônio Henrique Pereira Neto e seu trabalho pastoral

Nasceu no Recife aos 28 de outubro de 1940. Fez sua formação sacerdotal em Olinda, João Pessoa, com estudos de psicologia nos Estados Unidos. Foi ordenado sacerdote aos 25/12/1965, poucos dias após o término do Concílio Vaticano II.

Desde os tempos de Seminário, manifestava uma vocação para trabalhar com a juventude. Vários grupos de secundaristas e universitários recebiam sua orientação. Henrique defendia uma proposta metodológica baseada no seguinte princípio: o final do curso médio e o início do curso universitário é um momento propício para ajudar os jovens a se encaminhar para a vida.

Padre Henrique já tinha a experiência da Juventude Estudantil Católica (JEC); mas para melhor se preparar para sua missão, participava de encontros de pastoral de juventude a nível regional, nacional e latino-americano. Para fundamentar cada vez mais seus pressupostos apostólicos, dedicava bastante tempo aos estudos, sobretudo das
Sagradas Escrituras e da Liturgia.

Como responsável da Pastoral da Juventude da Arquidiocese reservava suas tardes para atender os jovens que o procuravam para conversar e discutir temas de interesse juvenil
no próprio prédio do secretário arquidiocesano – o Juvenato Dom Vital.

Também atendia no Colégio Marista do Centro, em parceria com os irmãos maristas no trabalho de formação dos jovens. Solicitei ajuda para o meu depoimento a membros dos grupos acompanhados pelo padre Henrique, perguntando: como funcionava a metodologia do grupo e qual o papel do Padre Henrique no relacionamento com os jovens. Recebi um depoimento esclarecedor, através de Lavínia Lins, após trocar ideias com outros/as colegas :

“...Éramos naquela época, amigos e conhecidos, (alguns filhos de pais que eram amigos), que se encontravam para conversar, “paquerar”, formar banda de música (“conjunto”, na época), organizar quadrilhas no São João. Henrique (assim gostava de ser chamado) havia aparecido por ali porque “um dos jovens estava tendo problemas com os pais” e ele intermediava diálogos entre eles. Os meninos então começaram a se
encontrar com ele (Henrique) com regularidade. As meninas souberam e se interessaram.

Passamos a nos reunir às 3ª feiras à noite, para conversas (a “reunião”) e domingos à tarde para a missa e debates.  Às vezes os pais iam à reunião e um diálogo entre gerações era mediado por ele. Com cada um de nós Henrique estabelecia uma relação pessoal, de intimidade e conhecimento. Chegou a aplicar alguns testes psicológicos (como o desenho de árvore e da família) buscando aproximar-se, saber mais sobre cada um de nós.

Sua postura era de aceitação (tão importante nesta idade) e sua linguagem era a nossa. Era jovem também. Favorecia as relações e a exposição sadia de cada um no grupo. Nossas vozes eram ouvidas e repercutiam. Sentíamos pertencendo a algo que nós mesmos criávamos. Era com este sentimento que estávamos sendo direcionados, de forma muito inteligente, a não nos envolver com álcool e drogas e a repensar temas que nos cercavam, como: as relações interpessoais, com outras gerações, temas sociais como  a prostituição, etc.

Ao mesmo tempo nos oferecia a Igreja Católica, não apenas na vivência dos encontros, mas através de uma missa descontraída, onde se tocava violão e cantava. Cada etapa era explicada. A missa  agora  era “prazerosa”. Um clima de informalidade e participação, incluindo as nossas realidades na própria celebração. Tudo era muito real e próximo, assim como as relações que se estabeleciam com amizades  que duram até hoje, apesar da distância, namoros que evoluíram para casamentos que se mantêm.  Henrique nos mostrava uma forma nova de nos relacionar conosco mesmos, com o outro, com o mundo”.

2. O contexto da Igreja em Olinda e Recife  no período

Padre Henrique assimilou com carinho as perspectivas da Igreja do Concílio Vaticano II, em clima de diálogo com o mundo, em clima de ecumenismo. Era um jovem que vivia a primavera da Igreja em renovação.
Dom Hélder Camara
E a nomeação inesperada de Dom Hélder Camara para o Recife, exatamente nesse período, lhe era providencial e tornou-se para o nosso jovem padre um modelo a imitar e uma corresponsabilidade a exercer.

Dois fatores significativos acentuavam a importância primordial da presença de Dom Hélder no Nordeste do Brasil no momento:  
a) O recente golpe militar de 31 de março de 1964;
b) O Concílio Vaticano II em pujante evolução na perspectiva de renovar a Igreja e melhor servir no mundo atual (duas sessões tinham acontecido).

Diante do regime militar, eram já conhecidas suas posições, tanto pela atuação na cidade do Rio de Janeiro como em nível nacional - em defesa dos direitos dos pobres, da democracia e da liberdade de expressão.

Durante o Concílio Vaticano II, exercendo, no período, a missão de Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lhe foi oferecida a possibilidade de ser, em breve, missionário do mundo, como peregrino da justiça e da paz, o que, de fato, aconteceu e o exerceu com maestria.

Construiu imediatamente um relacionamento especial de amizade durante o Concílio com os Bispos que tinham maior sensibilidade para a problemática do então chamado “Terceiro Mundo”. Neste contexto, surge o famoso grupo de Bispos, provenientes de todos os Continentes, que se encontrava para refletir sobre a missão da Igreja junto aos pobres e a necessidade da Igreja ser sinal do Cristo pobre.

Estes fatores históricos tornavam Dom Hélder um homem de características excepcionais para assumir o pastoreio numa região sofrida como o Nordeste, numa cidade cheia de contrastes sociais como o Recife, num momento político específico.

Dom Helder  assumia o seu pastoreio a 12 dias do golpe militar de 1964. A cidade do Recife era palco de numerosas prisões, exílios, por motivos políticos. O medo invadia a população. Havia um clima de sobressalto. A cada momento poderia haver novas prisões, novos pichamentos...

Dom Hélder, logo na mensagem de chegada, abre o coração aos seus diocesanos, procurando desarmar os espíritos. Fez uma saudação ao povo, ao seu povo, logo ao chegar ao Recife, permeada de liberdade evangélica, embebida de sabor profético – anúncio e denúncia, de teor missionário. Apresenta-se como o bispo de todos ao explicitar sua postura pessoal e suas prioridades:

”Ninguém se escandalize quando me vir frequentando criaturas tidas como indignas e pecadoras. Quem não é pecador? Quem pode jogar a primeira pedra? Nosso Senhor, acusado de andar com publicanos e almoçar com pecadores, respondeu que justamente os doentes é que precisam de médico.

Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou da oposição, antirreformistas ou reformistas, antirrevolucionárias ou revolucionárias, tidas como de boa ou de má fé. Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos, absolutamente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno”.

3. O bárbaro trucidamento do Padre Antonio Henrique

Corpo trucidado do padre Henrique
Padre Antônio Henrique foi formado na escola do seu Pastor Dom Helder. Também era fruto tanto da renovação da Igreja em pleno Concílio Vaticano II como fruto do compromisso com o mundo estudantil, ainda em ebulição, contra a ditadura militar.

Henrique tinha consciência de que corria risco. Estava comprometido com as causas dos estudantes universitários, ainda muito politizados, e fazia seu trabalho pastoral em sintonia com a dimensão profética da Arquidiocese com contínuas denúncias contra as arbitrariedades da ditadura milita; isto o levava a viver em  vigilância.

Seu bárbaro trucidamento aconteceu no dia 27 de maio de 1969. Na tarde do dia 26 de maio ainda recebeu vários jovens no Juvenato. Por volta das 19 horas saiu para uma reunião no bairro de Parnamirim, onde permaneceu com os jovens acompanhados dos seus pais, até às 22,30 horas. Conforme depoimento do grupo de Lavínia Lins já citado, após a última reunião quando o Padre Henrique entrou num carro desconhecido:

“Nosso último encontro se deu para que os pais e os filhos pudessem discutir tendo Henrique  como intermediador. O clima era agradável e seguro. Saí com meus pais e no Largo do Parnamirim, avistei Henrique pela última vez. Passamos de carro e tentei acenar para ele. Sem nos ver, entrava numa “rural”  verde e branca, me parece. Dois homens estavam fora do carro, de porta aberta, junto com ele. Outro dirigia. Depois  foi apenas a notícia”.

Na manhã seguinte, as autoridades eclesiásticas foram advertidas de que havia um corpo num capinzal ao lado da Universidade, reconhecido como o corpo do padre Henrique. Fora transportado para o necrotério público onde Dom Helder logo acorreu. Outros padres, inclusive Dom Basílio Penido, o abade do mosteiro de São Bento, médico, também se aproximaram e aí permaneceram até a conclusão da necropsia.

O sacerdote tinha sido amarrado, arrastado, recebeu três tiros na cabeça e algumas torturas; todos os golpes atingiram exclusivamente a cabeça e o pescoço, conforme atesta o próprio Dom Basílio Penido.

O corpo foi velado na matriz do Espinheiro, onde aconteceram duas celebrações – uma às 21 horas do mesmo dia e outra na manhã seguinte antes de partir para o cemitério. Nesse contexto, foi divulgada uma nota do Governo Colegiado da Arquidiocese, expressando a dor da arquidiocese, o sofrimento dos jovens em plena comoção, dos familiares perplexos.

Como a Igreja local não dispunha de meios de comunicação viáveis para divulgar o acontecimento e a imprensa local estava sob censura, o texto da Nota, após pronunciada, foi mimeografado e distribuída pelas paróquias, pelos colégios e universidades, fato que fez acorrer uma grande quantidade de pessoas para a celebração e, logo depois, para o enterro. A Nota foi redigida e discutida com a participação de 40 padres, vários deles membros do Conselho Presbiteral.

A Nota do Governo Colegiado da Arquidiocese de Olinda e Recife:

1. Cumprimos o pesaroso dever de comunicar o bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique Pereira Neto, cometido na noite anterior, 26 de maio, nesta cidade do Recife;

2. Aos 29 anos de idade e 3 anos de sacerdote, o padre Henrique dedicou a vida ao apostolado da juventude, trabalhando sobretudo com os universitários. Até às 22,30 horas de ontem, segundo o testemunho de um grupo de casais, esteve reunido, em Parnamirim, com pais e filhos, na tentativa que lhe era tão cara, de aproximar gerações;

3. O que há de particularmente grave no presente crime, além dos requintes de perversidade de que se reveste (a vítima foi amarrada, golpeada no pescoço e recebeu três tiros na cabeça) é a certeza prática de que o atentado brutal se prende a uma série
pré-estabelecida e objeto de ameaças e avisos;

4. Houve, primeiro, ameaças escritas em Edifícios, acompanhadas por vezes, de disparos de armas de fogo. O Palácio de Manguinho recebeu numerosas inscrições. A Sede do Secretariado Arquidiocesano e Regional Nordeste II foi alvejado. A residência do Arcebispo, na igreja das Fronteiras, alvejada e pichada.

5. Vieram, depois, ameaças telefônicas, com o anúncio de que já estavam escolhidas as próximas vítimas. A primeira foi o estudante Cândido Pinto de Melo, quartanista de engenharia, presidente da União dos Estudantes de Pernambuco. Acha-se inutilizado, com a medula seccionada. A segunda foi um jovem sacerdote, cujo crime exclusivo
consistiu em exercer apostolado entre os estudantes.

6. Como cristãos, e a exemplo de Cristo e do proto-mártir Santo Estevam, pedimos a Deus perdão para os assassinos, repetindo a palavra do mestre: “Eles não sabem o que fazem”.

7. Mas julgamo-nos no direito e no dever de erguer um clamor para que ao menos, não prossiga o trabalho sinistro deste novo esquadrão da morte.

8. Que o holocausto do padre Antônio Henrique obtenha de Deus a graça da continuação do trabalho pelo qual doou a vida e a conversão dos seus algozes.

Recife, 27 de maio de 1969

Dom Helder, arcebispo de Olinda e Recife,
Dom José Lamartine, Bispo Auxiliar e Vigário Geral,
Monsenhor Isnaldo Fonseca, Vigário Episcopal,
Monsenhor Arnaldo Cabral, Vigário Episcopal,
Monsenhor Ernanne Pinheiro, Vigário Episcopal

O percurso da Igreja do Espinheiro em direção ao cemitério, sobretudo na Avenida Caxangá, parecia um campo de guerra. O cortejo fúnebre foi crescendo em população durante a caminhada; contou com a presença de mais ou menos 8 mil pessoas.

Também aconteceram alguns incidentes desagradáveis. Invasão do cortejo por policiais para prender personalidades como o deputado federal cassado Oswaldo Lima Filho presente ao enterro e a invasão do cortejo para mandar tirar as faixas conduzidas pelas lideranças estudantis: ”Os militares mataram Padre Henrique”.

O enterro aconteceu no cemitério da Várzea, a pedido da família.  Lá chegando, o recinto estava totalmente cercado por forças militares, o que impedia qualquer manifestação. Era plano dos estudantes expressarem sua indignação juvenil diante do que eles estavam presenciando, o que Dom Helder tinha evitado que acontecesse no
interior da Igreja do Espinheiro.

Dom Helder acompanhou com muita unção todo o cortejo e foi perspicaz em perceber o quadro à chegada do cemitério. Procurando evitar possíveis confrontos, subiu numa cadeira, acenou para a população com um lenço branco em sinal de paz, rezou um Pai Nosso com a população, deu uma benção e solicitou que todos se retirassem em silêncio. Um silêncio piedoso, mas extremamente gritante.

4. A morte do padre Antonio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife

A missa de 7º dia foi o momento forte para a assimilação do trágico ocorrido. A Arquidiocese, tentando evitar fatos indesejáveis, preferiu descentralizar a celebração; preparou um texto litúrgico unificado para orientação de todas as paróquias e centros religiosos. Foi a ocasião para oferecer os critérios cristãos para avaliar o trágico
acontecimento. Sua introdução dizia o seguinte:

“Meus irmãos, há sete dias precisamente Antônio Henrique, presbítero da Igreja de Deus no Recife, foi trucidado por causa do Evangelho de Jesus Cristo. Reunidos, hoje aqui, não são pensamentos de ódio ou de vingança, não é a sede de mais sangue que nos movem e nos irmanam. São pensamentos de paz. Paz que brota da fé. Fé que fala mais alto do que a perversidade dos maus. Fé, que nos diz que padre Antonio Henrique está com Jesus, no Reino dos vivos. Fé que nos faz apreciar a importância do seu holocausto e ouvir os apelos de Deus a continuarmos o trabalho que  padre Henrique começou.

Imploremos a misericórdia de Deus sobre todos nós, que vivemos esta hora triste e angustiante; sobre a família do padre Henrique; sobre o mundo que mata aqueles que lhe anunciam a verdadeira paz; sobre os assassinos do padre Antonio Henrique”.

Na missa de 30º dia, a homilia de Dom Helder amplia a reflexão numa leitura religiosa do trágico acontecimento em sua relação com o momento político.
Começou a Homilia com uma  pergunta:

“O que diria o nosso Padre Henrique se Deus lhe permitisse que ele mesmo pregasse a homilia desta Missa? Que ponderações teria a fazer, que sugestões a apresentar, falando-nos de junto de Deus, onde nossa fé espera que ele se ache? Salvo engano, começaria repetindo a palavra de Nosso Senhor, em sua paixão:”Não choreis sobre mim, mas sobre vós e vossos filhos” (Lc 23,28)”.

E apresenta “Apelo que chega da eternidade”:

- da eternidade, de junto de Deus, ele apela para todos os que acusam a Igreja no Nordeste, de subversão e comunismo. Comparem o que estamos pregando em nossa região com o Ensino Social da Igreja, ainda recentemente expresso por Paulo VI em Genebra: estamos rigorosamente dentro da “Populorum Progressio” e das conclusos de Medellin;

- da eternidade, de junto de Deus, ele pede aos Governantes que, sem perda de tempo, partam para a reforma de base e, de modo particular, para a reforma agrária. Mas adverte que será impossível qualquer mudança autêntica de estrutura através de reforma conduzida de cima para baixo. Ou o Povo participa como agente de mudança, ou não haverá promoção humana e social;

- da eternidade, de junto de Deus, ele pede aos Responsáveis pela ordem pública que, quanto antes, terminem as medidas de exceção que estão tornando impossível o uso de processos democráticos da parte dos cidadãos em geral, e especialmente dos estudantes, e dos trabalhadores. A situação presente cria clima propício a arbitrariedades, e abusos, a crimes (e não seria difícil apontar casos, de que são tristes exemplos os esquadrões da morte). A situação presente impele os mais impacientes para a clandestinidade, a
radicalização e a violência.

Estas afirmações do nosso Arcebispo Dom Helder Camara levam-nos a considerar que a morte do padre Henrique, por motivações sócio-políticas, mas com convicções cristãs sólidas, não era uma exceção na América Latina. Estávamos rodeados de densa nuvem de testemunhos de fé (cf. carta aos Hebreus 12,1).

Nos anos das ditaduras na América Latina foram publicadas muitas reflexões sobre o conceito de martírio, valorizando os que tombaram numa luta pela democracia, em busca da justiça, motivados pela fé, sabendo que poderiam pagar com a vida sua doação.

O padre jesuíta Karl Rahner, considerado o grande teólogo do século XX, fala sobre a necessidade de ampliação do conceito clássico de martírio. Propõe que o termo martírio seja aplicado tanto para a morte suportada pela fé como pela morte que tem sua origem num compromisso e numa luta ativa, assumidos pela mesma fé.

5. As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes

A Igreja local de Olinda e Recife não ficou isolada nesse sofrido momento. Recebeu solidariedades diversas e significativas do Brasil e do exterior. Confortadora para todos, mas sobretudo para Dom Helder, foi a visita imediata do Secretário Geral da CNBB, Dom Aloísio Lorscheider.

Chegaram Mensagens do Santo Padre Paulo VI, do Secretário de Estado do Vaticano, da Presidência do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano), da Nunciatura Apostólica e tantas outras.

O Governador do Estado da época, Sr. Nilo Coelho, nomeou uma Comissão de Inquérito e entregou sua presidência ao Magistrado, juiz da 11ª. Vara, o Dr. Aloísio Xavier e para desempenhar as funções de Procurador nomeou o Dr. Rorinildo da Rocha Leão.

Logo no dia 11 de junho de 1969, o Dr. Aloísio Xavier, segundo publicou o jornal Diário de Pernambuco, deu um excelente testemunho em favor da conduta do sacerdote, afirmando com palavras claras e incisivas que valeu como uma resposta a todas as insinuações veiculadas por órgãos da imprensa.

Convidado a depor sobre o assassinato do Padre Antônio Henrique, na Comissão Judiciária, em abril de 1975, Dom Helder solicitou a anexação aos autos do processo sua declaração.

Ele relembra em detalhes os acontecimentos de maio de 1969, a nota do Governo Colegiado da Arquidiocese, o caminhar da Comissão Judiciária, as fases do processo e repete perguntas publicadas em Nota, no dia 29 de Agosto de 1969, fazendo sérias considerações (importante de serem explicitadas mesmo se algumas já atendidas).
Fala Dom Helder na sua declaração:

“Como esquecer a coincidência de, poucas horas antes do que ocorreu a Cândido Melo, ter sido alvejado o Juvenato Dom Vital (local em que trabalhava o padre Antonio Henrique), havendo os assaltantes – segundo depoimento de duas testemunhas citadas no Relatório da Comissão Judiciária - (parte final do item V), disparado suas armas, aos gritos de CCC?
Como esquecer que, segundo o mesmo Relatório, no mesmo item, foi o CCC quem ameaçou o Padre Henrique pelo telefone?”

A nota continuava perguntando:

“Porque não se faz uma devassa em regra sobre este famigerado CCC? Como e quando foi organizado? Quem o financia e quem o dirige? Quem são os seus sócios? Onde tem sua sede? Quais os objetivos e quais os feitos desta versão do Ku-Klux-Kan?

Houve interesse efetivo em apurar a passagem do CCC pela Universidade Rural? E pela Universidade Católica? E pelos Diretórios Acadêmicos da Escola de Engenharia e da
antiga Faculdade de Filosofia, ambas da Universidade Federal de Pernambuco?

E pela residência do Arcebispo, duas vezes alvejada e objeto de inscrições com ameaças? E pelo Palácio de Manguinho? Quais os resultados do Inquérito sobre o alvejamento do Juvenato Dom Vital onde funcionam a Cúria Arquidiocesana e os Secretariados Arquidiocesanos e do Regional da CNBB?”

Por que voltar ao caso neste momento?

A indignação ética dos brasileiros/as e, em especial, dos pernambucanos/as, exige que fato como esse agora relatado seja conhecido, refletido e avaliado para que nunca mais volte a acontecer no nosso país – Nunca Mais.

Ao mesmo tempo, é sumamente importante as novas gerações conhecerem seus verdadeiros heróis – os que deram a vida na busca de mais vida. E numa leitura cristã, repetimos o que diziam os primeiros cristãos:

“O sangue dos mártires é semente de novos Cristãos”.

Está de parabéns a Comissão da Verdade e da Memória de Pernambuco!

Recife, 16 de agosto de 2012.
Padre José Ernanne Pinheiro, Assessor da CNBB.