segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Memória da Flor: uma homenagem a Zé Paulo

Edberto Ticianeli
Zé Paulo na redação do Jornal de Alagoas

O ano era 2009, mas não me recordo do mês. Abro a caixa de e-mail e lá está uma mensagem do Zé Paulo, com mais uma das suas poesias. Começo a ler e descubro que não é mais uma poesia: é uma bela poesia,e com cara de letra de musica.

Como o Júnior Almeida já tinha gravado alguma coisa do Zé Paulo, encaminhei a mensagem para ele, comentando que aquele material tinha tudo para ser uma música. Minutos depois recebi um telefonema do Júnior Almeida:

— Estou aqui arrepiado com a poesia do Zé Paulo. A música está pronta na minha cabeça e assim que terminar eu mostro pra você.

Tempos depois eu recebi a Memória da Flor (veja no Youtube), mais um belo trabalho do Júnior, que, para mim, soa como uma homenagem ao Zé Paulo. “Memória da Flor” está no último CD de Júnior Almeida e dá nome ao disco e ao show, que acontecerá neste sábado, às 21 h, no Teatro Gustavo Leite – Centro de Convenções de Maceió.

Mas quem é esse Zé Paulo?

Conheço José Paulo da Silva Ferreira, Zé Paulo para os mais próximos, há muito tempo. Além de conterrâneo, lá de Pão de Açúcar — onde nasceu no dia 29 de junho de 1962 —, estivemos juntos na militância política no início dos anos 80. Zé Paulo frequentava regularmente a nossa casa, principalmente pela amizade com o meu irmão, o Etenio.

Nessa época, ele já produzia suas poesias, que eram publicadas nos jornais estudantis, como o Semente — jornalzinho dos estudantes universitários de Pão de Açúcar e editado por Etevaldo Amorim. A poesia abaixo foi publicada na edição de novembro de 1980, e traduzia o clima da luta contra a Ditadura Militar.

Metamorfose
Março de 1981. Estudantes secundaristas invadem a a Secretaria de Educação.
Zé Paulo está de boné, no alto à direita. 

Não se pode fugir
do açoite,
da noite
   Mas se pode trazer
   uma lanterna
   muito acessa.

Pode-se dizer não
ao sistema 
que se vai
É preciso dizer não
com força,
com garra,
com toda a certeza
de quem sabe da fé
em uma nova vida.

É preciso saber que
o novo homem nasce
ASSIM.

A Coletânea Caeté do Poema Alagoano, lançada em 1987 pela Secretaria de Cultura de Alagoas, publica uma das poesias de Zé Paulo. Mas, o primeiro trabalho premiado dele foi “A incrível prisão de Rui de Castro”, escolhida para ser publicada no “I Concurso de Poesia Falada”, promovido pela Fundação Cultural Cidade de Maceió, em 1997. Esta é considerada por muitos críticos como uma das melhores poesias da última década do século XX em Alagoas.
Igeja Matriz em Pão de açúcar. Foto de Duan Cícero.

A incrível prisão de Rui de Castro

Numa cidade pequena, 
as moscas estão muito próximas das pessoas.
Rui não está embriagado no bar central, 
com os olhos de molho no copo seco,
molhado de espuma seca,
ouvindo músicas ao violão deserdado de Etênio, 
o ex-hippie, porque Rui está em casa 
com os olhos molhados, enfiados num livro sem fim .
E, se acaba, botam-lhe outro entre as mãos e o cérebro, 
um pouco ante os olhos molhados 
de alguma coisa feito solidão.

Rui não está na calçada da igreja local, 
ouvindo as taras da juventude local, 
entre umas pernas e outras das moças passando
após as conversas com o padre,
morrendo de medo das moças fantasiadas 
morrendo donzelo, culpado, 
enfiando-se na alta calçada de cimento 
querendo sumir por baixo da porta.

Rui não está lá, nem na porta da farmácia,
onde velhos e novos fazendeiros contam os bezerros
vacinados ontem por medo da febre aftosa
e vomitaria nas botas novas dos senhores proprietários 
porque Rui de Castro está em casa, 
sem peito para nada, sem jeito para nada.

Rui de Castro não passeia pelas ruas pequenas, 
malfeitas, porém belas, 
por simples horror dos cumprimentos efusivos
ou não efusivos.
Basta apenas um alô para desconsertá-lo 
e pô-lo em fuga dolorida, a alma exposta pelo avesso;
assim, ultra-sensível ao vento dos lábios
de quem quer que seja mais.

Ele era um rapaz da cultura ou contracultura;
aprendeu inglês ouvindo os Beatles mas,
eu não sei quando nem como,
alguma coisa de humano se perdeu e mora, cara, 
numa cidade tão mínima cabendo toda neste poema.

E Rui nunca mais foi ao rio porque Rui, há muito tempo,
é um rio correndo inexorável para dentro do mar,
com a desvantagem de ser um rio sem margem.

Em 2001, Júnior Almeida grava a música “República da Rocinha”, a partir de uma poesia de Zé Paulo. É a quarta faixa do CD “Dias de Calor”.

Zé Paulo escolheu, como o Rui de Castro do seu poema, morar em Pão de Açúcar. Continuo a receber, semanalmente, algum trabalho seu e, atento, garimpo no meio de tanta coisa boa para ver se encontro outra pedra preciosa.

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