segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Emboladas

Resultado de um mapeamento cultural do Brasil realizado por Aluízio Falcão e Marcus Pereira no início dos anos de 1970, foram lançados, já em 1975, quatro coleções de discos com as gravações das principais manifestações de cada região do país. Segundo Aluízio Falcão, “todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes”.

Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo, os de Renato Carneiro Campos sobre bandas de pífanos e cocos, de Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi, o de Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas, e agora publicamos o último texto, o de Euricledes Formiga sobre as emboladas.

Os textos foram publicados aqui pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira.  

Emboladas

EURÍCLEDES FORMIGA

TODA FEIRA NORDESTINA é uma colorida e pitoresca exposição, heterogênea em seus elementos de sabor local, principalmente nas mostras abertas de seu artesanato de cerâmica, cestos, flandres, rendas etc., rudes e maravilhosos resultados de talento dos artistas do sertão, cangaceiros, beatos e cantadores.

Tornou-se famosa a feira de Caruaru, ainda mais depois do baião divulgado por Luiz Gonzaga, que não omite os mínimos detalhes daquele espetáculo folclórico do interior pernambucano.

Todavia, uma das atrações mais fascinantes da feira do Nordeste é, sem dúvida, o encontro de dois emboladores, empunhando o pandeiro ou o ganzá (instrumentos de flandre, cheio de caroços de chumbo), desfiando suas rimas com a rapidez de um raio ao calor do desafio, numa autêntica justa sonora, duelo de rapsodos cablocos que aumenta de entusiasmo quanto mais aguçados são os toques de provocação partidos de cada um dos contendores.

A paga é feita pelos circunstantes, que são elogiados ou satirizados conforme a reação ante os apelos feitos pelo embolador, quase sempre estendendo o pandeiro emborcado em evidente cobrança aos espectadores.

O gênero é simples e independente de qualquer composição preestabelecida quanto ao número e disposição dos versos. Há apenas um estribilho, que é repetido com intervalo maior ou menor por um dos cantadores, enquanto o outro improvisa. O metro é setissilábico e a redondilha maior; aliás, o mais comum mesmo entre os cantadores de viola, espetáculo à parte, que já obedece a modalidades diversas e que não é assunto no momento.

Já se disse que o povo de língua portuguesa fala habitualmente em redondilha maior:

– Senhor doutor delegado,
Vim aqui prá lhe dizer
que o meu vizinho do lado...

e vai por aí afora, falante e rimador.

Entre os mais conhecidos emboladores, merece citação especial o Tira-Teima, mulato alagoano, dono da extraordinária agilidade mental, hoje radicado em Brasília. Costuma denominar-se de serpente alagoana e afirma quando canta:

– Eu tenho tanto repente
que as vez me faço doente
com preguiça de cantar

Declara com segurança (e todo repentista que se preza faz questão de ter realizado tal proeza) que, certa ocasião, enfrentou o diabo numa peleja, o qual lhe surgiu na forma de uma negra:

– ...num instante eu conheci
que aquela negra era o cão,
o pandeiro caiu da mão
e eu fiz pelo-sinal

Apesar de apregoar seu indiscutível valor, com a empáfia natural dos grandes emboladores, não esquece um desafio que teve com um tal cego João Galdino, que o silenciou com um repente magistral:

– Eu sou João Galdino cego
e aonde eu bater um prego
quem vê não pode arrancar.

Os estribilhos da embolada são singelos, harmoniosos. Entre outros, costumam usar os seguintes:

– Lá vem o touro, ô iaiá,
com as pontas de ouro
cavando areia no má

– Sabiá da mata.
adeus, sabiá...
voou, avoou,
adeus, sabiá.
O dia vinha raiando,
via o sabiá cantando
nos pés de Nosso Senhor.

– A sulanda não me deu,
Ô sulanda não me dá
Ô sulandá.

Não há, porém, necessidade de ir ao Nordeste para assistir desafio de embolada. Na Guanabara, na feira de São Cristóvão, é comum aparecer uma dupla de repentistas do gênero; também em São Paulo, nas imediações do largo da Concórdia, diariamente se encontram improvisadores, com seu pandeiro e seu ganzá, os alagoanos Januário e Guriatã de Coqueiro.

É justo lembrar aqui que a embolada tornou famoso, nos meios radiofônicos, o pernambucano Manuelzinho Araújo, hoje artista plástico, que trocou o ganzá pelo pincel, sem contudo perder o sabor primitivo do seu talento. Deve-se a ele a divulgação dessa modalidade de cantoria popular nas camadas fora da ambiência sertaneja.

Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997

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