quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Bumba-meu-boi

Resultado de um mapeamento cultural do Brasil realizado por Aluízio Falcão e Marcus Pereira no início dos anos de 1970, foram lançados, já em 1975, quatro coleções de discos com as gravações das principais manifestações de cada região do país. Segundo Aluízio Falcão, “todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes”.
Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo, os de Renato Carneiro Campos sobre bandas de pífanos e cocos, e agora publicamos o de Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi.
Pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira, vamos reproduzir todos eles, em outras postagens.  

Os próximos serão os de Euricledes Formiga sobre as emboladas e Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas.

Bumba-meu-boi

HERMILO BORBA FILHO

AUTO OU DRAMA pastoril ligado à forma de teatro hierático das festas de Natal e Reis, o Bumba-meu-boi é o mais puro dos espetáculos nordestinos, pois embora nele se notem algumas influências européias, sua estrutura, seus assuntos, seus tipos e a música são essencialmente brasileiros.

Parece que a expressão Bumba-meu-boi origina-se do estribilho cantado, quando o boi, figura principal do auto, dança: Ê! Bumba!, com pancadas do zabumba, o que equivaleria a dizer: Zabumba, meu boi, isto é, o zabumba está te acompanhando, boi. Esta engenhosa opinião, com outras palavras, foi emitida por Gustavo Barroso; mas se recorrermos a Pereira da Costa – Vocabulário pernambucano – verificaremos que a palavra bumba significa, na verdade, o bombo ou zabumba, mais exatamente tunda, bordoada, pancadaria velha e, aí, atingimos o seu significado mais essencial, o da pancadaria, porque a maior parte dos espetáculos populares resolve as suas cenas com pancadas.

A origem do bumba-meu-boi perde-se no passado. Não resta dúvida que se trata de uma aglutinação de reisados em torno do reisado principal, que teria como motivo a vida e a morte do boi. O reisado, ainda hoje, explora um único assunto proveniente do cancioneiro, do romanceiro, do anedotário de determinada região. No caso do nosso espetáculo, porém, eles se juntaram para a formação de cenas isoladas, que culminam com a apresentação do boi, mantendo uma linha muito tênue, a do Capitão, servido em suas peripécias por Mateus, Bastião e Arlequim; os diálogos – mistura de improvisação e tradicionalismo – assemelhando-se aos da velha comédia popular italiana; e as músicas, executadas por uma orquestra composta de zabumba, ganzá e pandeiro, ou zabumba, ganzá e reco-reco, ou ainda zabumba, triângulo e rabeca, provenientes das toadas de pastoril, dos reisados, das canções populares, das louvações, das loas, da música popular religiosa.

Tradicionalmente representado durante o Ciclo de Natal, hoje em dia exibindo-se até pelo Carnaval, o espetáculo toma várias designações, conforme a região: Boi-bumbá, no Amazonas; Bumba-meu-boi, e Bois de Reis, no Maranhão e Piauí; Bumba-me-boi, Reisado Cearense, Boi de Reis, Boi Surubi, no Ceará; Boi Calemba ou Calumba, Rei de Boi, Bumba-meu-boi, no Rio Grande do Norte; Bumba-meu-boi, Boi, Bumba de Reis, no Espírito Santo; Bumba-meu-boi e Reis de Boi, no estado do Rio e Guanabara; Boi de Mamão, no Paraná e em Santa Catarina; Bumba-meu-boi, Boi-bumbá e Boizinho, no Rio Grande do Sul.

É um espetáculo praticado em arena, com o público em pé formando a roda que se vai fechando em torno dos intérpretes, até que a Burrinha, o Mateus e mesmo o Boi façam que ela, às custas de correrias e bexigadas, se abra o bastante para a representação poder continuar. Demora normalmente oito horas, não tanto pelo desenvolvimento das cenas, mas sobretudo pela repetição de palavras e passos. Num espetáculo dessa natureza é espantoso como os intérpretes dançam, cantam e representam sem mostra de cansaço, tomando cachaça nas várias saídas de cena. No Boi misterioso do Formigão, no Recife, comandado pelo capitão Antonio Pereira há 68 anos, a máscara é elemento importante e os atores que não a usam lançam mão de maquilagem bem carregada, feita com carvão ou farinha de trigo, assemelhando-se à própria máscara e tem a função de utilizar menor número de intérpretes para o papel de vários personagens.

Os papéis femininos são desempenhados por homens vestidos de mulher à boa maneira dos espetáculos elisabeteanos, exceção feita para a Pastorinha, geralmente uma menina. Outro elemento feminino usado no espetáculo é a cantadeira, que se senta ao lado da orquestra entoando loas e toadas para chamar os personagens à cena. O dinheiro, como a cachaça, é outro elemento constante numa função. Cada ator faz a sua coleta, através de piadas, as mãos estendidas, criando uma representação à parte. O sistema da sorte, o qual consiste em colocar um lenço no ombro do espectador, que o devolve com uma cédula dentro, nem sempre funciona e, por isso, os atores assaltam o público de mil maneiras engenhosas e cômicas.

Os personagens do auto podem ser classificados em três categorias: humanos, animais e fantásticos. E nas noites do Recife o espetáculo se repete:

Cavalo-marinho
chega prá diante
faz uma mesura
a essa toda gente.
Cavalo-marinho
já pode chegá
que a dona da casa
mandou te chamá.

E na madrugada ouvem-se os últimos versos:

Levanta-te, boi,
vamo-no s'embora,
que é de madrugada,
o rompê da aurora.

Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997

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