
Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo, os de Renato Carneiro Campos sobre bandas de pífanos e cocos, e agora publicamos o de Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi.
Pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira, vamos reproduzir todos eles, em outras postagens.
Os próximos serão os de Euricledes Formiga sobre as emboladas e Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas.
Bumba-meu-boi
HERMILO BORBA FILHO
AUTO OU DRAMA pastoril ligado à forma de teatro hierático das festas de Natal e Reis, o Bumba-meu-boi é o mais puro dos espetáculos nordestinos, pois embora nele se notem algumas influências européias, sua estrutura, seus assuntos, seus tipos e a música são essencialmente brasileiros.
Parece que a expressão Bumba-meu-boi origina-se do estribilho cantado, quando o boi, figura principal do auto, dança: Ê! Bumba!, com pancadas do zabumba, o que equivaleria a dizer: Zabumba, meu boi, isto é, o zabumba está te acompanhando, boi. Esta engenhosa opinião, com outras palavras, foi emitida por Gustavo Barroso; mas se recorrermos a Pereira da Costa – Vocabulário pernambucano – verificaremos que a palavra bumba significa, na verdade, o bombo ou zabumba, mais exatamente tunda, bordoada, pancadaria velha e, aí, atingimos o seu significado mais essencial, o da pancadaria, porque a maior parte dos espetáculos populares resolve as suas cenas com pancadas.
A origem do bumba-meu-boi perde-se no passado. Não resta dúvida que se trata de uma aglutinação de reisados em torno do reisado principal, que teria como motivo a vida e a morte do boi. O reisado, ainda hoje, explora um único assunto proveniente do cancioneiro, do romanceiro, do anedotário de determinada região. No caso do nosso espetáculo, porém, eles se juntaram para a formação de cenas isoladas, que culminam com a apresentação do boi, mantendo uma linha muito tênue, a do Capitão, servido em suas peripécias por Mateus, Bastião e Arlequim; os diálogos – mistura de improvisação e tradicionalismo – assemelhando-se aos da velha comédia popular italiana; e as músicas, executadas por uma orquestra composta de zabumba, ganzá e pandeiro, ou zabumba, ganzá e reco-reco, ou ainda zabumba, triângulo e rabeca, provenientes das toadas de pastoril, dos reisados, das canções populares, das louvações, das loas, da música popular religiosa.
Tradicionalmente representado durante o Ciclo de Natal, hoje em dia exibindo-se até pelo Carnaval, o espetáculo toma várias designações, conforme a região: Boi-bumbá, no Amazonas; Bumba-meu-boi, e Bois de Reis, no Maranhão e Piauí; Bumba-me-boi, Reisado Cearense, Boi de Reis, Boi Surubi, no Ceará; Boi Calemba ou Calumba, Rei de Boi, Bumba-meu-boi, no Rio Grande do Norte; Bumba-meu-boi, Boi, Bumba de Reis, no Espírito Santo; Bumba-meu-boi e Reis de Boi, no estado do Rio e Guanabara; Boi de Mamão, no Paraná e em Santa Catarina; Bumba-meu-boi, Boi-bumbá e Boizinho, no Rio Grande do Sul.
É um espetáculo praticado em arena, com o público em pé formando a roda que se vai fechando em torno dos intérpretes, até que a Burrinha, o Mateus e mesmo o Boi façam que ela, às custas de correrias e bexigadas, se abra o bastante para a representação poder continuar. Demora normalmente oito horas, não tanto pelo desenvolvimento das cenas, mas sobretudo pela repetição de palavras e passos. Num espetáculo dessa natureza é espantoso como os intérpretes dançam, cantam e representam sem mostra de cansaço, tomando cachaça nas várias saídas de cena. No Boi misterioso do Formigão, no Recife, comandado pelo capitão Antonio Pereira há 68 anos, a máscara é elemento importante e os atores que não a usam lançam mão de maquilagem bem carregada, feita com carvão ou farinha de trigo, assemelhando-se à própria máscara e tem a função de utilizar menor número de intérpretes para o papel de vários personagens.
Os papéis femininos são desempenhados por homens vestidos de mulher à boa maneira dos espetáculos elisabeteanos, exceção feita para a Pastorinha, geralmente uma menina. Outro elemento feminino usado no espetáculo é a cantadeira, que se senta ao lado da orquestra entoando loas e toadas para chamar os personagens à cena. O dinheiro, como a cachaça, é outro elemento constante numa função. Cada ator faz a sua coleta, através de piadas, as mãos estendidas, criando uma representação à parte. O sistema da sorte, o qual consiste em colocar um lenço no ombro do espectador, que o devolve com uma cédula dentro, nem sempre funciona e, por isso, os atores assaltam o público de mil maneiras engenhosas e cômicas.
Os personagens do auto podem ser classificados em três categorias: humanos, animais e fantásticos. E nas noites do Recife o espetáculo se repete:
Cavalo-marinho
chega prá diante
faz uma mesura
a essa toda gente.
Cavalo-marinho
já pode chegá
que a dona da casa
mandou te chamá.
E na madrugada ouvem-se os últimos versos:
Levanta-te, boi,
vamo-no s'embora,
que é de madrugada,
o rompê da aurora.
Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997
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