Resultado de um mapeamento cultural do Brasil realizado por Aluízio Falcão e Marcus Pereira no início dos anos de 1970, foram lançados, já em 1975, quatro coleções de discos com as gravações das principais manifestações de cada região do país. Segundo Aluízio Falcão, “todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes”.
Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo, e agora publicamos os de Renato Carneiro Campos sobre bandas de pífanos e cocos.
Pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira, vamos reproduzir todos eles, em outras postagens.
Os próximos serão os de Euricledes Formiga sobre as emboladas, Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas, e Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi.
Banda de pífanos
RENATO CARNEIRO CAMPOS
A BANDA DE PÍFANOS, no Ceará, é chamada de Cabaçal; em Alagoas, Esquenta Mulher; na Paraíba e em Pernambuco, Terno ou Zabumba. Inicialmente, a função dessas orquestras rústicas, pobres de instrumentos, com os pífanos de taboca aparentados dos instrumentos de sopro indígenas, era a de tirar esmola para o Divino Espírito Santo e padroeiras das localidades do interior nordestino.
Usadas, também, nos desfiles das cavalhadas em diversas festas do interior, invadem casas grandes, capelas sertanejas, juntando moleques atrás delas quando saem nas ruas.
Provavelmente, trata-se de uma herança musical ibérica. Na Espanha, elas acompanham as Pastorales e Vilancicos do Natal. Em Portugal, com o nome de Bombo, estão ligadas às romarias e às cantigas de arraial. Compõem-se, quase sempre, de dois ou três pífanos, três tambores, uma caixa, um tarol e pratos de metal. Há um pífano mais grave e outro mais agudo, como se fossem primeira e segunda flautas. Em Ferreiros, o mestre Ovídio usa duas rabecas em sua orquestra. Geralmente, as músicas não são cantadas. No Terno de Pífanos de Caruaru, no entanto, às vezes intercalam o canto na melodia.
O Quinteto Armorial, que surgiu sob a orientação de Ariano Suassuna, inspirou-se no Terno de Pífanos de mestre Ovídio. Vários temas foram orquestrados, alguns recriados, obedecendo a um tratamento erudito. Um dos temas nacionais, A briga do cachorro com a onça, famoso em todo o Sertão nordestino, aqui no disco é apresentado pela Banda de Pífanos de Caruaru.
Por sua vez, o Quinteto Violado, que tanto sucesso vem alcançando no sul do país, tem também as suas raízes e a sua fonte de inspiração nos modestos Ternos de Pífanos nordestinos.
Coco
RENATO CARNEIRO CAMPOS
NÃO É SOMENTE o baiano que dá a primeira umbigada. Em quase todo o Nordeste rural, sobretudo nas zonas canavieiras e praieiras, dança-se o côco. A dança começou nos engenhos, de origem africana (Artur Ramos, Mário de Andrade e Câmara Cascudo sugerem também influências ameríndias, provavelmente dos Caetés). Antigamente chegou a atingir os salões elegantes de Maceió e João Pessoa, dançado por moças das classes mais altas. Há quem veja nele um feliz cruzamento das músicas negra e indígena. Muitos compositores populares brasileiros têm se aproveitado do côco e da embolada, principalmente em cantigas de carnaval, lançando mão da criação anônima, deturpando-a quase sempre, salvando-se algumas poucas recriações dignas de notas.
O côco é dança eminentemente popular. Há um imperialismo dos instrumentos de percussão, íngonos, pandeiros, cuícas e ganzás. Raríssimas vezes aparecem a viola e o violão. É também chamado de samba, pagode, zambê, bambelô.
O bambelô é uma manifestação típica do Rio Grande do Norte, onde o Quinteto Violado recolheu versos improvisados e refrões. Os instrumentos usados na gravação de estúdio são os mesmos que o povo utiliza nas fontes desta pesquisa: pandeiro, pau-de-semente (ganzá), puita e bobão (surdo). Todas as informações aqui alinhadas a respeito do côco são válidas para o bambelô.
O côco sem coreografia é a embolada. Supõe-se que ele tenha nascido no célebre Quilombo dos Palmares. A música surgiu no ritmo do trabalho de quebrar côcos. Daí a expressão quebrar-côco ter se tornado, posteriormente, não apenas um convite ao trabalho, mas à dança, que geralmente ocorre da seguinte maneira: forma-se roda, no centro da qual fica o tirador de côco, uma espécie de solista, cantando os côcos conhecidos e até chegando a improvisar, acompanhado pelos participantes; depois, os pares fazem voltas e batem palmas, dando entre essas voltas as umbigadas. É um canto social, utilizando sistematicamente – como disse Mário de Andrade – solo e coro.
Atualmente as praias nordestinas formam a área de maior influência do côco. Ainda não decresceu o seu prestígio, sobretudo nas festas de São João e do fim do ano. Pode-se dizer, sem exagero, que se trata de uma das mais expressivas e ricas criações, tanto do ponto de vista musical quanto do coreográfico, do gênio popular brasileiro.
Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997
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