sábado, 10 de setembro de 2011

O “Canto Chão” do 3º Festival Universitário de Música

Edberto Ticianeli
Zé Armando (voz e violão), Zé Barros (violão),
Felix Baigon (baixo), Tony Batera (bateria) e
Luciano (flauta).

Em meados dos anos 70, após o período mais repressivo da ditadura militar, os estudantes foram os primeiros a voltar às ruas, lutando por democracia. Mesmo ainda recebidos com cassetetes e bombas de gás lacrimogêneo, foram persistentemente retomando seus espaços. Nos campi universitários e nas escolas, mesmo com o Decreto-Lei nº 477 tentando intimidar os estudantes e professores, os enfrentamentos ocorreram e o direito da livre manifestação foi reconquistado. Assim ressurgiram os festivais, para colocar o “cantando” ao lado do “caminhando”.

Em Alagoas, após terem sido interrompidos no final dos anos 60, os festivais foram retomados em 1982, pelo Diretório Central do Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Alagoas  (Ufal), que conseguiu o feito histórico de gravar um LP com as 12 músicas finalistas. Esse disco tem a particularidade de ser o único LP (Long Play) produzido no Brasil por uma entidade estudantil. Só o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), que em 1962 lançou um compacto com quatro músicas, também tem essa marca.   

Para o DCE Ufal 81/82, da gestão Avançar na Luta, a decisão de voltar a realizar um festival não foi fácil. Aliada à falta de experiência, não havia segurança entre os diretores sobre como lidar com a censura exercida pela Polícia Federal (PF). A dúvida era se cumpriríamos todas as exigências deles ou faríamos de conta que estávamos cumprindo e iríamos para o enfrentamento realizando um festival livre. A solução foi encaminhar as inscrições e esperar a reação da PF para tomarmos as nossas posições.

Quando, em abril de 1982, foram encerradas as inscrições, surgiu o primeiro problema: as quase 200 músicas inscritas ultrapassavam as expectativas e inviabilizavam a possibilidade de todas se apresentarem para julgamento. A saída veio com uma pré-seleção. Um júri especial foi montado e, noite após noite, todas foram ouvidas, a partir de um gravador conectado ao sistema de som do auditório da reitoria. Assim, foram selecionadas 60 músicas, 15 para cada uma das quatro semifinais.

O número de músicas inscritas já anunciava que o festival não poderia mais ser tratado como mais um evento do DCE. A intensa mobilização das torcidas fez com que redefiníssemos o local das apresentações, trocando o auditório da reitoria pelo Teatro Deodoro. Outra iniciativa, provocada pela dimensão que o festival tomou, foi colocar à disposição dos selecionados uma banda base, que ensaiava numa sala do Clube Português. Tendo a mesma banda como base, se ganharia tempo nas mudanças das apresentações das músicas durante as semifinais.
César Rodrigues, intérprete da
canção Canto Chão

Quando tudo parecia definido, a direção do Teatro Deodoro informou que a velha estrutura do teatro não suportaria a lotação máxima, o que era previsível acontecer com o acesso gratuito. Depois de muita negociação, resolveu-se que haveria cobrança de ingressos e se limitaria a ocupação ao espaço térreo. Nas quatro noites em que foram realizadas as eliminatórias, muita gente, sob protesto, teve que acompanhar o festival do lado de fora. Para evitar mais descontentamentos, resolvemos realizar a final no Ginásio do CRB, na Pajuçara, que não tinha uma boa acústica, mas recebeu bem as mais de duas mil pessoas que aplaudiram a vitória de Canto Chão. Essa final foi transmitida, ao vivo, pela Rádio Gazeta.

A Censura

Com o festival ganhando repercussão, entendemos que já existiam condições de enfrentarmos a censura. Enviamos à Polícia Federal as cópias das 60 semifinalistas e, enquanto aguardávamos a liberação, encaminhamos a divulgação já com os nomes de todas as músicas concorrentes. A PF nos chamou a depor e nos avisou que não podíamos divulgar nada enquanto eles não autorizassem. Continuamos normalmente com a divulgação. Com a aproximação do dia da primeira semifinal, voltamos ao Departamento de Censura para sabermos a situação das músicas e notamos que eles estavam segurando a liberação para inviabilizar o festival. No último momento, nos informaram que algumas músicas seriam vetadas em parte e uma delas não poderia ser executada. Como não haveria tempo hábil para mudanças, eles esperavam que o festival não acontecesse.

Zé Luiz Pompe,  Dudel e Ricardo Mota defendem
Legião dos Condenados
Na primeira semifinal, lá estava, nos bastidores do Teatro Deodoro, o policial censor acompanhando tudo o que se fazia e se dizia no palco. Com o anúncio das músicas, ele percebeu que iríamos desrespeitar a censura e ameaçou paralisar o festival. Era o momento esperado, em que saberíamos se a Ditadura Militar estava disposta a enfrentar o desgaste de ter que impedir um festival universitário. Jogamos duro e desafiamos o policial a subir no palco e anunciar as músicas que não poderiam ser apresentadas. Ele recuou e saiu do local afirmando que iria procurar o seu superior para tomar as providências. Continuamos com as apresentações e ficamos aguardando uma possível ação policial. Nada aconteceu.

Encerrado o festival, teve início o processo de gravação do LP. O DCE acertou com a Rozenblit, em Recife, que o disco seria gravado nos finais de semana, período em que todos os músicos podiam participar. A gravação durou meses e só foi possível pelo esforço dos músicos, que saíam direto, dos bares e restaurantes onde trabalhavam, para um ônibus.

Passado o período de gravação, vieram os problemas para a prensagem dos discos. Era preciso uma autorização do Departamento de Censura da PF, coisa que, obviamente, eles não deram. Apelamos para a instância regional, em Recife, que também negou a autorização. A última chance era no Conselho Superior de Censura (CSC), em Brasília, que agia muito lentamente.

Enquanto aguardávamos a decisão do CSC, com muito jeito conseguimos convencer a Rozenblit a adiantar a prensagem dos discos, com o compromisso de só distribuí-los após a liberação da Censura, sob pena de prejudicar a empresa. Com os mil discos nas mãos e temendo a sua apreensão, montamos uma verdadeira operação de guerra para transportá-los para Maceió e escondê-los sob o mais absoluto segredo. De tempos em tempos, por segurança, havia uma mudança de esconderijo, e novamente se organizava sigilosamente o transporte dos discos.

Somente no dia 25 de fevereiro de 1983 foi que o Conselho Superior de Censura liberou a música Canto Chão para ser gravada. A decisão nº 28/83 foi publicada na página 30, seção 1 do Diário Oficial da União (DOU) de 4 de março de 1983. O fato que marcou essa decisão foi a defesa contundente da liberação da música feita pelo conselheiro e jornalista Roberto Pompeu de Souza, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa – ABI.

A veemência do jornalista o levou a sentir um mal-estar cardíaco, sendo socorrido em um hospital local. Esse episódio ganhou o noticiário de vários jornais de circulação nacional, o que terminou por criar uma pressão favorável à liberação do disco, que foi distribuído já na gestão 82/83 do DCE Ufal.

Em 2006, o disco foi digitalizado em São Paulo e, em 2009, a Ufal distribuiu mil cópias do CD, que tem uma nova faixa com o pronunciamento de abertura do festival em 1982. São essas as músicas do disco: Canto Chão, de José Edson, César Rodrigues e Francisco Elpídio; Sebo nas Canelas, de Pedro Rocha Fortes; Matança do Boi, de Antônio Carlos; Sem Remédio, sem Doutor, de Macleim C. Damasceno; Allea Jacta Est, Antônio Carlos; Samba da Ilusão, de João Melo e Zailton Sarmento; A História da Concha do Mar, de Nelson Braga; Raízes, de Francisco Elpídio e Eliezer Setton; Renegados, de José Gomes Brandão; Legião dos Condenados, de Ricardo Mota; Vai e Vem, de Maria Amélia Pessoa e Tentação, de Francisco D. Nunes e Izabel Brandão.

Após o 3º Festival Universitário de Música, o DCE Ufal ainda realizou outros, mas sem gravar discos. Eles não tiveram a mesma dimensão do festival de 1982, que foi o desaguadouro da produção musical universitária represada.

Com o enfraquecimento da censura e o fim do regime militar, em1985, também deixou de existir a motivação política de se cantar a liberdade e denunciar o arbítrio, tirando dos festivais o seu discurso mais importante. Para mim, que era o presidente do DCE de 1981/82, o festival foi uma das realizações mais gratificantes da minha passagem pelo movimento estudantil.

Esse texto foi publicado na revista Graciliano, nº 9, de junho/julho de 2011.

Um comentário:

José Vanderlei disse...

Ticianeli, eu sou testemunha desse trabalho. Inclusive, participei de todas as etapas. Desde as discussões de como fazer o Festival, passando pelo regulamento, coordenação dos ensaios (no club português, com a banda Trevus), script das apresentações e direção de palco. Estive em Recife no antigo estúdio Somax acompanhando a gravação de algumas músicas. Estive depois em SÃo Paulo, após encontro de estudantes de Comunicação realizado em Campinas, nas Rádios divulgando o Disco. Já no segundo, eu fui como concorrente com a música Objeto Concreto. Foi uma das Finalistas no Clube Fenix. Não é desculpa de perdedor,mas as forte chuvas que c caíram no ginásio abafou o nosso trabalho, pois a música tinha todo um arranjo de cordas do Almir Medeiros (violoncelo), Catarina (viola), Joselho (violino), Marcelo Percussão, Altair Roque (violão), na zabumba (ele era da paraíba e não me ocorre o nome agora). Eu e Silvia Nazário defendemos a música.
Obrigado por ter tido a oportunidade de contar essa história. infelizmente, como o registro dessa coisas foram precários, as pessoas esquecem do nosso nome nesse processo de construção da cultura alagoana universitária.