quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Cultura e Contestação: do underground ao playground e volta

Os jovens desse início de século XXI acreditam na política, mas não creem em partidos; reconhecem a importância da coletividade, mas almejam crescer individualmente; buscam transformações, mas são pouco afeitos a rupturas; anseiam por novas ideias, mas são também pragmáticos.

Desbunde. Vivendo suposta a “era do fim das ideologias”, a juventude dos anos 80 travou uma guerra nada fria. Imersa num senso de urgência, essa geração experimentou certa paixão estético-política pela ruptura, niilismo ativo apaixonado pela transgressão, pela radicalidade da violência. Essa foi, provavelmente, a última geração capaz de discernir algo politicamente fundamental, como nos lembrou Slavoj Zizek: “a verdadeira escolha não é aquela feita entre duas ou mais opções num conjunto dado de coordenadas, mas aquela em que escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas”. E, por se saber freada na possibilidade desse “livre-arbítrio”, tal geração lançou-se nas teias do Real; seu vigor confundia-se, e anunciava, sua auto-aniquilação expressa na radicalidade com que executou o mote “Sexo, Drogas e Rock’n Roll”.

Contra a insuportável angústia do sentir-se inexistente, sem possibilidades de mudança, essa geração levou a cabo a única mudança possível: sua própria extinção. Esvaziar-se de si mesmo, eis a saída. Ao proceder de tal maneira, do ponto de vista da cultura, os anos 80 encerraram o fim de um século e marcaram o início de outro, afinal, o nexo das relações sociais na década de 90 foi caracterizado pelo hedonismo e pelo o esvaziamento de si mesmo. No entanto, se antes tal linguagem era realizada em nome de uma certa transformação, nos anos 90 ela se fez velada por certa desfaçatez, realizada pela gramática do “politicamente correto”: a euforia degenerada cedeu lugar ao silêncio do abaixo-assinado, a forma universal de reclamação daquele período. A lógica do “bom-mocismo”, hegemônica naquela última década do século XX, instaurou a ilusão de um mundo dócil, plástico, simulado.

Playground
No final do século XX, o imperativo do “Não Transgrida!” coordenou o nexo de uma sociedade substantivamente sem substância, a outra face daquele esvaziamente de si mesmo. Alguém já notou: tempos estranhos esses em que nos são oferecidos café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool. A lista pode ainda ser prolongada revelando o caráter absolutamente nocivo dessa lógica: a homeopatia resume-se ao fármaco sem fármaco, o sexo virtual não é outra coisa senão o sexo sem sexo; a política enquanto técnica de gestão e administração não é algo diferente de uma política sem política. Tudo é permitido, desde que sem o conteúdo perigoso, trata-se de uma coincidência imediata entre prazer e constrangimento, a difusão do artificial, trazida com a necessidade do sexo seguro ou da felicidade em cápsulas de Prozac foram generalizadas. Há nisso tudo, entretanto, certa carga de cinismo, não é trivial que o consumo exagerado de fast-foods e frituras seja acompanhado da difusão de emagrecedores e anabolizantes.

Ao contrário do que se imagina, ser politicamente correto sempre, pode ser algo moralmente nocivo, pois abre as sendas para o conluio com o existente e esgota as possibilidades de se enunciar possibilidades futuras, de modo que todo “dever ser” converte-se, imediatamente em um “é dever...”, apenas à espera de predicado. Prova disso é que as próprias alternativas de contestação encontraram-se colonizadas pela lógica imperante; elas oscilaram entre a busca por um reencontro com a natureza (sintetizado nas figuras das práticas orientais, neo-xamânicas) e a militância domesticada em ONG’s e instituições de ajuda humanitária. Nada contra tais práticas, entretanto há que se considerar que elas abrem sendas para uma certa cumplicidade ingênua, faceira, ao enunciarem ora uma fuga do mundo, ora uma concertação sem alarde.

Volta
Entretanto, no início desse século XXI, algumas formas de contestação vieram à tona, animadas pelas novas tecnologias e pelas novas redes de interconexões. A ampla difusão dos programas que permitem realizar downloads de músicas e filmes promoveu um choque entre a indústria cultural e a propriedade intelectual; mais adiante, a ampliação de canais e meios para a produção virtual criou uma ruptura entre a telespectador passivo e o cyberprodutor ativo. Ainda que se saiba, como afirmam os mais cautelosos, que a revolução não será tuitada e que a produção/circulação pela internet tem feito surgir uma constelação de pseudo-talentos em busca de fama-rápida, há que se admitir que esses novos instrumentos reascenderam as discussões sobre a propriedade privada e sobre o papel dos sujeitos na sociedade, questões fundamentais para a contestação da ordem estabelecida.

Ao que tudo indica, e como apontou pesquisa recente sobre o sonho brasileiro, uma nova etapa de transformações está tomando forma. Mas essa disposição para a mudança passa por marcos ambivalentes: os jovens desse início de século XXI acreditam na política, mas não creem em partidos; reconhecem a importância da coletividade, mas almejam crescer individualmente; buscam transformações, mas são pouco afeitos a rupturas; anseiam por novas ideias, mas são também pragmáticos. Em suma, esse novo caldo cultural exigirá um novo esforço de compreensão. Resta descobrir se o novo espírito anti-acomodação é apenas um velho rearranjo das tradicionais coordenadas ou a criação de novas rotas de mudança.

(*) Doutorando e mestre em Desenvolvimento Econômico (IE/UNICAMP), bacharel em Ciências Sociais (FFLCH/USP).

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