sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Jornalismo laico: Depois da Guerra Fria, a Guerra Santa

Por Alberto Dines em 23/08/2011 na edição 656 do Observatório de Imprensa.


A questão religiosa está nas manchetes, capas, telinhas e monitores da mídia mundial. Há mais tempo, com mais destaque e mais espaço do que a crise econômica mundial (formalmente iniciada em setembro de 2008) e os conflitos bélicos propriamente ditos.



O mapa-múndi contemporâneo é na realidade um registro cartográfico das fogueiras acesas depois da queda do Muro de Berlim. O fogo sagrado inviabiliza o Afeganistão (Ásia Central), divide a dividida Indonésia, inflama o Irã, sangra o Iraque e todo o Oriente Médio (Israel inclusive), espalha-se pelo Magreb, vai ao centro da África, cruza o Mediterrâneo, volta a se aninhar no habitat natural da Península Ibérica, infiltra-se em quase toda a Europa, Países-Baixos, Escandinávia (o Massacre de Oslo foi umpogrom religioso), atravessa o Atlântico e instala-se no sistema linfático dos Estados Unidos. A América Latina não escapa da grande conflagração embora os adversários (católicos e protestantes) identifiquem-se como soldados de Cristo.
Esclarecimento, ponderação
Não se trata de um enfrentamento litúrgico ou teológico, Deus não está em discussão, nem a conquista territorial dos Estados conflagrados como aconteceu na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). O objetivo das cruzadas do século 21 é a conquista dos corações e mentes (mais aqueles do que estas) dentro desses Estados.
O que estamos testemunhando sem perceber não é o “choque de civilizações” como o previu Samuel P. Huntington, mas uma tentativa de paralisar o processo civilizacional que marca a humanidade há alguns milênios. Gigantesca guerrilha política, a primeira no gênero, verdadeiramente global, disfarçada em conflito confessional com o objetivo de trocar o ser humano pleno, soberano, em mero adorador de imagens e rituais.
A consagração da sinistra Michele Bachman, a verdadeira feiticeira de Salem, como líder do Tea Party (ou Hate Party, dá no mesmo) liquida o conservadorismo político americano e obriga os republicanos – todos os republicanos – a se aproximarem de uma forma ou de outra da arcaica Ku-Klux-Klan.
Em Madri, o papa Bento 16 diante da maior concentração religiosa na história do país adverte energicamente aos jovens que foram ouvi-lo na Jornada Mundial da Juventude que só existem duas opções de vida: casar-se ou ingressar em conventos. Sua Santidade não explicou o que devem fazer aqueles que não querem ou não podem se casar e os que recusam encarcerar-se numa ordem religiosa. Suicidar-se ou cair na gandaia?
As Organizações Globo declaram-se laicas em seus Princípios Editoriais, mas não conseguiram cobrir – de forma isenta ou engajada – o que se passou na Espanha antes, durante e depois da visita do papa. Apenas a Folha de S.Paulo, nos minguados espaços entre colunas assinadas e anúncios de imóveis, ofereceu uma pálida idéia das manifestações em defesa do Estado secular na Espanha.
Laicismo não é sinônimo de omissão. Jornalismo laico é obrigatoriamente esclarecedor, ponderado, ajuizado. Sobretudo tolerante. Defender o Estado secular não significa investir contra as religiões ou crenças, queimar templos, livros sagrados ou desrespeitar devoções. Significa apenas defender o Estado de Direito democrático e isonômico.
Mais luz
O mundo maometano fragmenta-se irremediavelmente: a divisão entre xiitas e sunitas ultrapassou a rivalidade entre seitas e dinastias que conflitam há 1.500 anos. Gerou um processo incontrolável de disputas e fragmentações menores que, longe de pacificar o Islã para fortalecê-lo, sangra-o em batalhas fratricidas perenes. O Islã surgiu como um processo conciliador – isso precisa ser mostrado ao leitor, ouvinte, telespectador.
O Estado de Israel foi criado a despeito da oposição da maioria dos religiosos ortodoxos que só admitiam a Redenção pelas mãos do Messias. O fundamentalismo religioso judaico está corroendo não apenas os fundamentos da democracia israelense como os do próprio sionismo. Nas comunidades judaicas da Diáspora o apoio aos governos de Israel deixou de ser automático, natural. Isto é bom para revitalizar os fundamentos éticos e culturais do judaísmo. E quem O Globo designa para opinar sobre o Oriente Médio na sua nobre página de opinião? O cônsul honorário de Israel no Rio de Janeiro, religioso, declaradamente de direita.
Os movimentos desta Guerra Santa Mundial precisam ser detectados e explicados, senão nas apressadas edições diárias, pelo menos nos fins de semana. O jornalismo impresso entrou em decadência porque voluntariamente abriu mãos das suas vantagens intrínsecas.
Um jornalismo laico como o preconizado nas diretrizes das Organizações Globo pede mais luzes, mesmo que hoje o Iluminismo seja confundido com uma marca de lâmpadas.

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