sábado, 27 de agosto de 2011

Gregório Bezerra, sua luta, sua glória

Por Urariano Mota no Blog do Boitempo


O título acima não é o de um samba-enredo, à semelhança do grande de Mano Décio, Penteado e Estanislau da Silva, em Exaltação a Tiradentes. Neste artigo, o título vem a propósito do livro Memórias, de Gregório Bezerra. Espero mostrar para o leitor por que é difícil obter um tom piano, suave, para falar de um livro que é nervo e coração exposto.  
Surpreende nele agora, como antes, a narração fluida de um homem que se alfabetizou sozinho na idade de 25 anos. Lembro que no Recife, em 1982, eu lhe perguntei como era possível um autor que não podia ser chamado de intelectual (confesso que, para ser sincero, cometi tal grosseria), como era possível ele escrever um livro que se lia com prazer. Então o velho Gregório ensinou a este grosseirão: “A história, quando é bem vivida, a gente sabe contá-la”. E guardei esta lição de literatura e verdade.
Dos vários trechos que anotei, é impossível destacar um. Se pudesse, deveria ser feita uma antologia de páginas desta  autobiografia.  Entre tantas, há linhas que para mim lembram Dickens e a guerra pela vida. Como aqui:
“Cada gazeteiro se considerava dono deste ou daquele setor de venda, desta ou daquela zona, ou até desta ou daquela rua ou praça. Eu não era dono de nada, mas precisava viver e, para viver, tinha de vender jornais, pois não havia outro ganha-pão. Meti a cara e enfrentei os riscos. Uma briga aqui, uns tapas ali, umas tabicadas mais além e assim ia vivendo e lutando pelo pão de cada dia. Era uma vida duríssima. Aos poucos, com muita desvantagem contra mim, ia revidando os insultos, os palavrões, os murros, os tapas, as tabicadas, os chutes e também as pedradas. Desgraçadamente, eu era menor que meus agressores, tinha menos força e menos agilidade do que eles, mas era teimoso, não entregava os pontos e não me dava por vencido. Às vezes, com um só rival, brigava três, quatro vezes, até sentir que tivera algumas vantagens ou que ele desistia definitivamente de me perseguir. Essa minha atitude impôs certo respeito, porque qualquer agressor que me atacasse de antemão sabia que, se me vencesse, eu iria à forra tantas vezes quantas perdesse para ele. Nem sempre eles estavam dispostos a esses embaraços. Para mim, era questão de sobrevivência: ou tomava essa atitude, ou me transformaria para sempre num saco de pancadas – ou então fugia daquela dolorosa profissão”.
Em outros trechos, é comovente, enternecedor o quanto o perigosíssimo incendiário, o indivíduo bravo, era um homem de sensibilidade fina, delicado, um avesso absoluto da grossura e da crueldade. O amor que esse guerreiro possuía pela mãe está entre as páginas cálidas de nossa brasilidade, e a mim me falou particularmente mais de uma vez, por razões íntimas, em capítulos do livro que ando escrevendo.
“Uma vez, à noite, pedi à minha mãe para me pôr na escola; ela me olhou, pôs a mão em minha cabeça… e começou a chorar e a acariciar-me. Arrependido de ter pedido uma coisa impossível, caí no choro por ter feito minha mãe chorar. Ela sentou-me em seu colo e choramos os dois juntos. Jurei comigo mesmo não fazer a minha mãe chorar nunca mais”.
Nesse livro se nota, com séria eloquência, que para Gregório Bezerra o partido comunista era igual ao povo. E o comunismo, para ele, era igual à redenção máxima sobre a humilhação que ele sofreu e viu. Então se entende que para um homem que pensava, respirava e sonhava assim, todas as forças da terra se unem. Não haveria repressão que o destruísse. Como aqui:   
“Nessa altura, fui impedido de falar por uma coronhada no peito e outra na face direita. Caí com os dentes partidos e sangrando pela boca. Os pulsos também sangravam, em conseqüência das algemas. Foi nessas condições que fui conduzido ao general-comandante do IV Exército. Perguntou-me:
- Que estava fazendo na zona canavieira do estado?
- Mobilizando os assalariados agrícolas e a massa camponesa para defender o governo legalmente constituído, para defender a Constituição da República contra o golpe militar realizado a serviço do imperialismo ianque.
- Onde estão os depósitos de armas e munições sob a sua responsabilidade?
- Que depósitos de aramas e munições, senhor general?
- Os que estão em seu poder.
- Não os tenho, senhor general. Se os tivesse, não estaria aqui, em sua presença, não estaria sendo agredido, humilhado e insultado pelos coronéis Ibiapina e Bandeira.
- Onde estaria então?
- Estaria na rua, de armas na mão, junto com as massas…
Ainda no pátio do quartel, estava à minha espera o comandante, o coronel Vilocq. Recebeu-me a golpes de cano de ferro na cabeça, tendo eu por isso desmaiado… A seguir, puseram-me numa cadeira e três sargentos seguraram-me por trás, enquanto Vilocq, com um alicate, ia arrancando meus cabelos. Logo depois, puseram-me de pé e obrigaram-me a pisar numa poça de ácido de bateria. Em poucos segundos, estava com a sola dos pés em carne viva. Toda a pele tinha sido destruída”.              
E o coronel Vilocq partiu para lhe enfiar um ferro no ânus, ao que Gregório, caído, se concentrou para evitar a abjeção. É impressionante como, debaixo de todas as torturas, sempre resistiu nele a vontade de viver, não para esticar por esticar seus dias, mas para servir à luta comunista. No entanto, Memórias,  de Gregório Bezerra, é um livro que não exige qualquer adesão prévia para a ideia socialista de mundo. Os evangélicos de todas as igrejas,  os espíritas, os católicos, os catimbozeiros, os torcedores de todos os times, homens, mulheres e jovens ganham na sua leitura o conhecimento do quanto é capaz o amor de um homem por seu povo.
Penso que agora entendem porque, enquanto escrevia estas anotações, não cansava de repetir o samba de Mano Décio, no Exaltação a Tiradentes:
“Este grande herói para sempre há de ser lembrado”.     

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