Joaquim Carvalho, ex-repórter de Veja |
Em 2005, entrevistado por Eustáquio Gomes para o Observatório de Imprensa, fez severas críticas à mídia, a quem acusou de vender mercadoria podre para atrair audiência.
Como o Tribunal do Júri vai julgar os quatro seguranças indiciados e o caso voltou a frequentar o noticiário, as ponderações do Joaquim Carvalho merecem ser revista para que o bom jornalismo sobreviva.
Eustáquio Gomes - Observatório da Imprensa
Não é todo dia que aparece um repórter investigativo. Mais raro ainda é o repórter que, durante a investigação de um caso, vê-se na situação de nadar contra a corrente da informação dominante. Foi o que aconteceu a Joaquim de Carvalho, repórter escalado pela revista Veja para cobrir as mortes de Paulo César Farias (tesoureiro da campanha de Fernando Collor e pivô da série de escândalos que levou ao impeachment do presidente) e de sua amante Suzana Marcolino da Silva, no dia 23 de junho de 1996.
Na contramão da maioria dos veículos de comunicação – cuja influência sobre o imaginário popular foi devastadora – Joaquim negou-se a entrar na onda da "queima de arquivo", mantendo sempre, à medida que sua apuração prosseguia, a convicção de que se tratava de um crime passional. Ou seja: Suzana atirou contra PC Farias e se matou em seguida.
Passados oito anos da "tragédia de Guaxuma", sem que outras evidências tenham se firmado, Joaquim, aos 41 anos, resolveu contar em livro a história de sua investigação pessoal. Ela coincide com o laudo pericial da equipe comandada pelo legista Fortunato Badan Palhares, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cuja reputação foi duramente atingida pela cobertura que a mídia em geral escolheu fazer na época – e que Joaquim chama de "mercadoria podre", "feita sob medida para vender jornal e atrair audiência".
Ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo em 1992, Joaquim não poupa ninguém com sua metralhadora giratória voltada para as principais tribunas de informação do país. Basta! (A Girafa, 240 páginas, R$ 35) é um libelo contra certo tipo de cobertura jornalística. A seguir, sua entrevista.
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Por que você esperou oito anos para escrever sobre o Caso PC, quando poderia tê-lo feito quando a controvérsia era maior?
Joaquim de Carvalho – Em 1996, quando PC foi assassinado, cobri o caso pela revista Veja e todas as reportagens que fiz indicavam o crime por razões passionais. A última reportagem teve até um título forte – "Caso encerrado" –, o que evidenciava a ausência de dúvidas de minha parte a respeito do caso. Na época, o assunto só comportaria um livro se tratasse do caso em si, se tivesse um teor exclusivamente policial. Não era e não é a minha proposta. Eu trato do crime e dos bastidores da cobertura do crime – estes, para mim, configuram a essência de um crime de outra natureza. Com as reportagens que se seguiram ao crime, jornalistas atingiram a honra de inocentes, a reputação de profissionais. Houve um massacre e é a história desse massacre que procuro retratar em meu livro. Além disso, considerei que seria prudente aguardar uma manifestação isenta da Justiça para publicar o livro. E essa manifestação veio pela mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal, que no final de 2002 arquivou o caso. É como se diz popularmente, a Justiça tarda mas não falha. Para mim, o caso deveria ser encerrado já em 1996. Mas o oportunismo que se instalou no seio do Judiciário e nas páginas da imprensa continuou alimentando a farsa. Tinha certeza de que a verdade triunfaria e, com essa precaução, evitei que jornalistas levianos me acusassem de estar publicando um livro para favorecer A ou B.
Enquanto a maior parte da imprensa adotou a tese da queima de arquivo, você concluiu que se tratava de crime passional. Por que Veja estaria certa e praticamente o resto da imprensa teria errado?
J. de C. – O caso, do ponto de vista policial, é simples. Dois corpos, um revólver, duas balas deflagradas, o quarto trancado. O assassino, portanto, estava lá dentro. Dos dois mortos, um tinha motivo para matar – Suzana estava sendo rejeitada. Dizem os especialistas que esta é uma das variáveis da equação criminosa. Além do motivo, o assassino precisa do instrumento – no caso, Suzana tinha comprado a arma – e da oportunidade – PC, bêbado, dormiu. Portanto, Veja não foi excepcionalmente brilhante ao tratar dos fatos. Ela simplesmente retratou o caso com humildade, rendendo-se às evidências. O restante da imprensa, com raras exceções, optou por um caminho diferente, que era o de maior apelo popular.
A tese de queima de arquivo chamava mais a atenção e, chamando mais a atenção, o jornalista e a publicação que a acolhia se destacavam. Quem age assim pratica não o jornalismo isento, mas o jornalismo sensacionalista. E o que o livro mostra é que o sensacionalismo existe e, em grande medida, também na grande imprensa, na chamada imprensa séria.
Quais foram as evidências que levaram você, como repórter escalado por Veja para cobrir o caso, a concluir que Suzana matou PC e suicidou-se?
J. de C. – Além das evidências já relatadas nesta entrevista, o que me chamou a atenção foi o número de pessoas que precisariam ser envolvidas na hipótese do crime ter sido encomendado. No momento do crime, na casa havia dois seguranças, um porteiro, os dois caseiros e seus dois filhos pequenos e o garçom. Além deles, mais os dois seguranças que chegaram depois e encontraram os corpos. Já temos dez pessoas, portanto. Todas elas, de alguma forma, deveriam ser cúmplices do crime. Ora, uma armação conspiratória não resiste a tanta gente envolvida. Alguém, fatalmente, acabaria rompendo o silêncio. E, incrível, todas essas pessoas – à exceção dos filhos dos caseiros, na época pequenos – não mudaram uma vírgula do seu depoimento nas muitas vezes que foram chamados para prestar declarações.
Os seguranças chegaram a ser presos e não mudaram sua versão. Alguém poderia dizer que eles receberam dinheiro para isso. Verifiquei pessoalmente como eles levavam a vida. E eram todos humildes, um deles, o porteiro, perdeu o emprego, morava numa favela e não conseguia arrumar outra colocação. E por quê? Porque, depois do massacre da imprensa, ele convive com o rótulo de assassino.
Em sua opinião, por que o grosso da imprensa teria optado pela tese da queima de arquivo? Por ingenuidade, por falta de capacidade investigativa ou por que era mais interessante como assunto?
J. de C. – Não gostaria de emitir juízo de valor sobre o caso. Poderia ser interpretado como arrogante. Acho que a farsa e os erros grotescos falam por si. Mas nesta cobertura fica patente uma característica de nossas redações hoje em dia: a pobreza – eu diria indigência – profissional. Houve um tempo que os melhores jornalistas ocupavam cargos de chefia. Clóvis Rossi já foi chefe, Alberto Dines também. Veja tinha Mario Sergio Conti e, antes, teve Mino Carta. Se retrocedermos, vamos encontrar Samuel Wainer e tantos outros. Atualmente, você encontra chefiando repórteres quem nunca fez uma reportagem na vida ou quem teve uma atuação medíocre na reportagem. Mas essas pessoas fizeram uma carreira brilhante pela via administrativa. São os chefes que comandaram demissão em massa, que fecharam vagas de correspondentes, que mediocrizaram o jornalismo brasileiro e o transformaram em arena de marketing. São os coveiros da profissão. Mas poderiam ser chamados de burocratas que adequaram as redações aos novos ventos da economia. Cortaram custos, agradaram os patrões e subiram na vida. São eles que dizem aos repórteres que linha adotar numa cobertura.
Como cortaram custos, os repórteres, em geral, são jovens ou inexperientes e fazem tudo para agradar aos chefes. Também existem os carreiristas. E o que mais poderia agradar aos editores na época do caso PC do que uma matéria feita sob medida para vender jornal e atrair audiência? Existe o ciclo vicioso da mediocridade e alguém precisa rompê-lo. No fim, quem perde é o público, que paga pela publicação e recebe uma mercadoria podre, mentira empacotada como verdade.
A interpretação que Veja deu ao caso coincide com o laudo final da equipe do legista Badan Palhares. Desde o caso PC, Badan foi satanizado e até arrolado em CPI. Tudo isso foi uma criação da mídia que se viu contrariada em sua tese de queima de arquivo?
J. de C. – Quando a polícia científica emitiu seu laudo, a imprensa tinha duas alternativas: ou admitia que errou ou desqualificava os peritos. Os jornalistas optaram pela segunda alternativa e para isso promoveram a sábio de plantão George Sanguinetti. E quem era o Sanguinetti? Um coronel da Polícia Militar conhecido pela truculência, psiquiatra que tinha dirigido um manicômio e sobre quem pensavam acusações de tortura. Tudo isso foi ocultado do público, além do fato de que Sanguinetti, ao longo de sua "carreira" no Instituto Médico Legal, ter realizado apenas dois exames de corpo de delito. No IML, ele nunca tinha assinado uma única autópsia. Evidentemente, não era qualificado para contestar laudo algum. Mas, quando o entrevistado diz o que a mídia quer ouvir, é bem tratado. Para promover Sanguinetti, era preciso destruir Badan Palhares, e isso foi feito, a despeito do fato de ser ele um dos onze especialistas que assinaram o laudo. O laudo, portanto, não era do Badan, mas de uma equipe, de quatro instituições diferentes. Badan já ganhou algumas ações na Justiça por defender sua reputação. Mas, sintomaticamente, isso nunca foi noticiado.
Mas por que Sanguinetti não poderia estar com a razão?
J. de C. – Sanguinetti não tinha razão, como admitiria mais tarde o próprio Ministério Público, tanto de Alagoas quanto na esfera da República. Mas Sanguinetti se deu bem. Conseguiu eleger-se vereador com o slogan: "Não podem calar essa voz". Também passou a ser requisitado para dar pareceres como contratado de bancas de advocacia. Há dois anos, ele cobrava cinco 5 mil dólares por parecer. A imprensa foi usada e usou Sanguinetti.
Veja surpreendeu o país com a revelação do laudo final sobre o caso antes que ele fosse oficialmente anunciado. Como você teve acesso ao laudo?
J. de C. – É algo que nunca vou revelar, para preservar minhas fontes. Off é sagrado para o jornalista tanto quanto o segredo de confessionário o é para o padre. A polícia tentou arrancar essa revelação, ao me interrogar por quatro horas. Perda de tempo. Na escola em que fui formado, aprendi que certos princípios éticos são inegociáveis e inquebrantáveis.
Para você, o caso está encerrado ou ainda pode surgir uma nova versão com o passar do tempo, com novas investigações?
J. de C. – A farsa vai continuar, porque qualquer reportagem ou ato de autoridade que alimente a versão conspiratória chamará a atenção e terá audiência, independentemente de seu compromisso com a verdade. O Caso PC terá no Brasil a mesma trajetória do assassinado de John Kennedy, nos Estados Unidos. Lá, apesar das inúmeras investigações realizadas, nunca se conseguiu apresentar uma tese convincente de conspiração. Mas as tentativas prosseguem e houve até um filme sobre o caso. Pessoas com um grau de exposição não têm direito a morrer de determinadas formas. Se PC fosse atropelado e morresse, diriam que foi queima de arquivo. A diferença nos Estados Unidos é que o jornalismo sério, como o de Walter Cronkite, que cobriu o caso como âncora da CBS, não aceita o sensacionalismo, não publica versões delirantes e fraudulentas. Em resumo, não engana seu público.
Seu livro foi lançado há dois meses e já teve a primeira edição esgotada. Entretanto, salvo Veja, ninguém publicou uma linha sobre ele. Trata-se de uma retaliação? Profissionalmente, você foi retaliado desde o caso PC?
J. de C. – Evidentemente, ao nadar contra a corrente, você tem mais dificuldade. Eu tenho o livro e as imagens que sustentam os argumentos do livro e nenhuma televisão quis divulgá-los até o momento. Mas continuo alimentando a esperança de que essa situação vai mudar. A publicação do livro só foi possível graças à coragem de um editor, na minha opinião o melhor editor do Brasil, Pedro Paulo de Sena Madureira, da Girafa. O Correio Popular e o Observatório da Imprensa publicaram entrevistas e Veja divulgou uma nota. Também falei a um canal universitário e um jornalista do site Comunique-se publicou uma entrevista. Felizmente, na imprensa brasileira existem pessoas sérias, bem formadas e eu diria até corajosas, o que propicia brechas para o bom jornalismo – que não tem o compromisso exclusivo com a audiência, que não é peça de marketing, que é capaz de renunciar ao espetáculo para dar a seu público uma versão diferente do que reza o senso comum. Se eu não pensasse assim, teria desistido da profissão.
Você está preparando algum livro novo?
J. de C. – Sim, mas por enquanto é prudente manter o projeto em segredo. Daqui a dois anos, o livro deverá estar nas livrarias.
2 comentários:
Adoreiiiiiiiiiii a entrevista!! Já virei fã dessa cara! Sempre tive uma pulga atrás da orelha sobre esse crime. Já comprei o livro e vou presenteá-lo pro meu pai. Ele, por exemplo, acompanhou tudo. Claro, somos alagoanos, e na imprensa local o que se falava e muito era o assassinato de PC Farias.
Parabéns, precisamos sempre de um jornalismo sério, e isso vem de profissionais, como Joaquim Carvalho. E, pra encerrar, tb sou jornalista e prezo pela informação verdadeira.
Julgamento é histórico, mas consagra impunidade
MÁRIO MAGALHÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA
É histórico o resultado do julgamento relativo às mortes de Paulo César Farias e Suzana Marcolino.
O tribunal do júri recusou a versão estabelecida pela polícia de Alagoas em 1996, segundo a qual Suzana teria assassinado o namorado e se suicidado. E consagrou a conclusão do inquérito, também da Polícia Civil alagoana, de 1999: o casal fora vítima de duplo homicídio. Não houve "crime passional".
Foi a mesma convicção do Ministério Público, na denúncia de 1999. Quando pronunciou os réus, a Justiça considerou haver provas para que eles fossem submetidos a júri popular. O júri rejeitou o relato do primeiro grupo de peritos que atuou no caso. De acordo com o primeiro laudo, Suzana disparou contra PC e contra si própria.
Os jurados adotaram a interpretação da segunda equipe de especialistas, que produziu estudos em 1997 e 1999, afirmando que ocorrera duplo homicídio.
Se é possível sustentar que o júri constatou o óbvio, tão ululantes são as provas de dois homicídios, o julgamento consagra a impunidade.
Os quatro réus, todos policiais militares que trabalhavam como seguranças de PC, foram absolvidos.
É difícil acreditar que os PMs não tenham ouvido os tiros em 1996, mas suas condenações provocariam um incômodo: seriam punidos peixes pequenos, sem a identificação do mandante.
Duas pessoas foram assassinadas, mas ninguém foi punido pelos crimes. Desde as mortes, passaram-se 17 anos, numa demora que emperra a Justiça. Provas foram destruídas, e a investigação no calor do fato foi deficiente.
O julgamento oferece lições para o jornalismo. Não cabe à imprensa patrocinar laudos periciais, substituir o papel da Justiça e decretar arbitrariamente o encerramento de casos controversos.
Até o começo de 1999, existiam dois laudos divergentes. Em 23 de março daquele ano, o promotor encarregado do caso disse que pediria o arquivamento do processo, por ausência de provas de duplo homicídio. No dia seguinte, a Folha publicou fotografias que contradiziam as perícias que bancavam a versão de Suzana assassina e suicida.
Então, o Ministério Público retomou a investigação, e houve a reviravolta.
Quando especialistas se confrontam, o jornalismo deve buscar de modo autônomo informações que possam esclarecer quem tem razão.
Ao receber a notícia do resultado, lembrei-me do jornalista Ari Cipola. Com o colega Paulo Peixoto e eu, Cipola participou da investigação da Folha sobre o caso PC em 1999.
Cipola morava em Maceió, foi intimidado e precisou ser protegido pela Polícia Federal. Morreu de causas naturais em 2004, aos 42 anos. Pena que ele não viveu para assistir ao julgamento.
MÁRIO MAGALHÃES é jornalista, ex-ombudsman da Folha e autor da biografia "Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo" (Companhia das Letras)
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