O texto de Luiz Carlos Prestes Filho nos convida a refletir sobre a importância de um carnaval festa, mais próximo do povo.
Luiz Carlos Prestes Filho*
Publicado na Revista Política Democrática - Ano X - nº 29
O desfile
das escolas de samba dos grupos C, D e E, que é realizado todos os anos na
Estrada Intendente Magalhães, no bairro de Madureira, “é um dos mais
importantes projetos culturais e de inclusão social do mundo”, afirma com
autoridade o urbanista Ephim Shluger, que trabalhou mais de dez anos para o
Banco Mundial em Nova York, desenvolvendo projetos em países asiáticos,
africanos e europeus. É dele a autoria do projeto que recuperou o sítio
histórico de São Petersburgo, na Rússia, para o entretenimento e o turismo.
Durante três
noites, madrugada adentro, 41 escolas de samba apresentam seus desfiles que
podem e devem ser comparados com os grupos Especial, A e B, realizados no
Sambódromo, na Marquês de Sapucaí. A diferença? A marca comunitária dessas
escolas, coisa que as grandes já perderam. E - claro - o entusiasmo popular. A
cada desfile surgem inovações. Porém, o mais importante em Madureira é a
concreta proposta de respeitar a tradição e a raiz do carnaval carioca. As
menores escolas cariocas sabem o que é samba no pé.
O evento
reúne cerca de 30 mil pessoas diariamente. Dessa maneira, são cerca de 120 mil
pessoas domingo, segunda, terça e sábado, quando foi realizado o desfile das
campeãs. Como não existe cobrança de ingressos, parece uma viagem no tempo, à
época das pequenas arquibancadas modulares ou da simples corda que separava a
escola de samba do público, permitindo ao espectador e ao desfilante estar no
mesmo nível. É a população da Zona Oeste, da Zona Norte e da Baixada Fluminense
que ocupa esse espaço planejado e organizado pela Prefeitura e pela Associação
das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ).
Muita gente
vem para o desfile com suas cadeiras de praia, guarda-sol, mesinhas, isopores e
garrafas térmicas. Padronizadas, as barracas de comes e bebes se derramam ao
longo de um quilômetro em luzes coloridas. Na opinião do urbanista Ephim Shluger
“a infraestrutura não corresponde à magnitude do que acontece com tanta
espontaneidade e originalidade, aqui está aquele carnaval que tantos dizem que
foi perdido para sempre, aqui está a festa das comunidades do samba da
periferia desassistida em equipamentos culturais, que não sabe o que é ter um
cinema, sala de teatro, museus ou livrarias perto de casa”.
As 16
escolas do grupo C desfilaram este ano com uma média de 600/1.000 sambistas; as
13 escolas do grupo D com a média de 500/600; e a do grupo E com 350/500.
Portanto, uma massa entre 30 e 35 mil
pessoas passou por essa passarela – que pode ser denominada de Passarela do
Povo.
O
antropólogo Roberto DaMatta publicou durante o carnaval deste ano o artigo
“Carnaval & Cinzas”. Em certo momento ele destaca: “Espero que o leitor
tenha se ‘esbaldado’ neste carnaval. Seja entrando na folia; seja afastando-se
dela para recolher-se em alguma serra ou refúgio turístico, o que dá no mesmo.
Em ambos os casos, o carnaval se faz presente pela criação e, mais que isso,
pela reafirmação de que a vida sempre está em outro lugar”.
No Carnaval
de Madureira as comunidades gritam que a vida deles está sendo resolvida
naquele momento, naquele espaço físico. Para essas comunidades não existe o
outro lugar para a vida. Até porque planejam e executam os seus desfiles para
honrar sua identidade, seu chão. Uma observação curiosa. Durante os três dias
de desfiles, no meio dessa multidão de espectadores e de realizadores dos
desfiles, a polícia não prendeu sequer um mijão na Intendente Magalhães. Como
disse um soldado: “Aqui é a casa dessa gente, tanto para os que vêm assistir
como para aqueles que vêm desfilar, por isso urinam nos banheiros químicos, por
mais incômodo que seja ficar nas filas, mulheres e homens. Imagine serem pegos
sujando o local onde as crianças e idosos, seus familiares, estão curtindo a
alegria?”.
Pois, se
para Roberto DaMatta, durante o carnaval a “vida sempre está em outro lugar”, a
festa de Madureira afirma outra coisa: a festa está aqui, e é aqui que se deve
curtir a felicidade. Quem sabe é por isso que na mais alta madrugada, entre as
duas e cinco horas da manhã, o que se vê no rastro das escolas são crianças e
adolescentes, com idades que vão entre 2 e 17 anos, se divertindo. Encontrei
dois casais com bebês recém-nascidos no colo. E vejam que estou escrevendo
sobre Madureira, bairro abandonado na periferia da cidade do Rio de Janeiro,
mergulhado em problemas de segurança, transporte, saúde e educação. Toda essa
vida é impossível nesse mesmo horário em qualquer bairro da Zona Sul ou na
proximidade da Marquês de Sapucaí. Pode ser que por isso muitas escolas de
samba desejam continuar em Madureira, para conviver com seu povo e não com o
público do Grupo Especial. Para seus dirigentes a palavra ‘acesso’ gera um
incômodo, pois remete a uma ideia de uma coisa incompleta, de uma coisa que
queria ser e não é. Essas escolas são!
Roberto
DaMatta continua: “O governo, nega, mas o carnaval permite; a moralidade diz
não, o carnaval, sim; na vida diária falamos e ouvimos discursos, no carnaval
cantamos sem cantores; o real obriga o uso do uniforme e do avental, o carnaval
faculta a máscara que engendra duas caras e sujeitos; na vida real somos todos
visíveis, com fantasia criamos uma invisibilidade; nos trancamos em casa, mas
no carnaval nos escondemos na rua. ‘Quando as pessoas intentam se passar pelo
que não são, a gente sabe que é preciso uma máscara’, dizia um anônimo inglês
em 1780, falando dos carnavais europeus”.
No Carnaval
da Intendente Magalhães ninguém se esconde na rua, até porque aquela rua é a
casa dos presentes; aqueles que desfilam e aqueles que assistem estão
irmanados, não existe máscara. Eles estão integrados num só movimento
comunitário. Apresentando, durante os desfiles, o estado de espírito de seus
líderes, carnavalescos, a saúde financeira da agremiação e seu compromisso com
um jeito único de falar, sonhar, elaborar e desenvolver projetos sociais. Estar
na passarela já significa vencer. Mesmo sem ter qualquer escola mencionada na
grande mídia escrita, falada ou televisionada.
“Julguei
todos estes anos”, escreveu com saudosismo – também durante o carnaval - o
compositor Aldir Blanc, “que a folia é dos desdentados, dos miseráveis, dos
espoliados...” Este lamento somente poderia vir de pessoa que não conhece o que
acontece em Madureira. O mesmo distanciamento do carnaval popular está nítido
no texto do jornalista Cesar Tartaglia: “Os desfiles não são feitos por escolas
de samba, são no máximo escolas com samba – ou algum ritmo que mais se
assemelha à marcha do que ao formato consagrado por gênios como Silas de
Oliveira e Mano Décio”.
Tanto Aldir
Blanc como Tartaglia poderiam reservar um tempinho na suas agendas no próximo
carnaval de 2012 para conferir o carnaval dos desdentados, dos miseráveis, dos
espoliados. Mergulhar na viva tradição do samba de escolas como Unidos de Lucas
e Matriz de São João de Meriti, Império da Praça Seca e Mocidade Unida de
Jacarepaguá, Unidos de Cosmos e Acadêmicos de Vigário, Unidos de Vila Rica e
Rosa de Ouro. Penso que o antropólogo Roberto DaMatta teria um amontoado de
informações para escrever mais um livro genial. Constatariam perplexos: o
carnaval do povo existe!
A Associação
das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro, onde se reúnem as agremiações
dos grupos C, D e E, demonstra vigor e criatividade, além do compromisso com o
samba. Através de uma parceria com o Centro de Referência em Inteligência
Empresarial (Crie - Coppe/UFRJ) identificou 600 currículos de profissionais com
perfil para compor o Corpo de Jurados do Carnaval deste ano. E promoveu um
curso para os 60 escolhidos, com orientação acadêmica da Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM). Esses profissionais deram as notas este ano,
fazendo surgir, pela primeira vez na história do carnaval, um corpo de jurados
com uma visão científica. Desta maneira, entendo eu, o carnaval não somente não
morreu, vive com suas tradições e continua sua evolução permanente. No caso do
desfile de Madureira, continua sua evolução respeitando as tradições. Tanto que
é, ali, nessas agremiações, que se formam as futuras passistas e baianas, os
futuros mestres-sala e porta-bandeiras, assim como os carnavalescos e puxadores
entre tantos outros profissionais da festa popular. Por esta razão, existe a
afirmativa de que é nessa passarela que germinam os futuros carnavais.
*Luiz Carlos
Prestes Filho é autor dos livros: "Economia da Cultura - a força da
indústria cultural do Rio de Janeiro (2002)", "Cadeia Produtiva da
Economia da Música (2005)" e "Cadeia Produtiva da Economia do
Carnaval (2009)". É vice-presidente da Associação Brasileira de Gestão
Cultural (ABGC) e vice-presidente Cultural da Associação das Escolas de Samba
da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ)
Nenhum comentário:
Postar um comentário