quarta-feira, 8 de maio de 2013

O carnaval do Povo.. Existe!

Para quem acha que todo desfile de escola de samba tem que ser televisionado pela Globo, além de obedecer as suas normas, é bom conhecer esta experiência, que acontece no mesmo Rio de Janeiro da Sapucaí.

O texto de Luiz Carlos Prestes Filho nos convida a refletir sobre a importância de um carnaval festa, mais próximo do povo. 

Luiz Carlos Prestes Filho*
Publicado na Revista Política Democrática - Ano X - nº 29


O desfile das escolas de samba dos grupos C, D e E, que é realizado todos os anos na Estrada Intendente Magalhães, no bairro de Madureira, “é um dos mais importantes projetos culturais e de inclusão social do mundo”, afirma com autoridade o urbanista Ephim Shluger, que trabalhou mais de dez anos para o Banco Mundial em Nova York, desenvolvendo projetos em países asiáticos, africanos e europeus. É dele a autoria do projeto que recuperou o sítio histórico de São Petersburgo, na Rússia, para o entretenimento e o turismo.

Durante três noites, madrugada adentro, 41 escolas de samba apresentam seus desfiles que podem e devem ser comparados com os grupos Especial, A e B, realizados no Sambódromo, na Marquês de Sapucaí. A diferença? A marca comunitária dessas escolas, coisa que as grandes já perderam. E - claro - o entusiasmo popular. A cada desfile surgem inovações. Porém, o mais importante em Madureira é a concreta proposta de respeitar a tradição e a raiz do carnaval carioca. As menores escolas cariocas sabem o que é samba no pé.

O evento reúne cerca de 30 mil pessoas diariamente. Dessa maneira, são cerca de 120 mil pessoas domingo, segunda, terça e sábado, quando foi realizado o desfile das campeãs. Como não existe cobrança de ingressos, parece uma viagem no tempo, à época das pequenas arquibancadas modulares ou da simples corda que separava a escola de samba do público, permitindo ao espectador e ao desfilante estar no mesmo nível. É a população da Zona Oeste, da Zona Norte e da Baixada Fluminense que ocupa esse espaço planejado e organizado pela Prefeitura e pela Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ).

Muita gente vem para o desfile com suas cadeiras de praia, guarda-sol, mesinhas, isopores e garrafas térmicas. Padronizadas, as barracas de comes e bebes se derramam ao longo de um quilômetro em luzes coloridas. Na opinião do urbanista Ephim Shluger “a infraestrutura não corresponde à magnitude do que acontece com tanta espontaneidade e originalidade, aqui está aquele carnaval que tantos dizem que foi perdido para sempre, aqui está a festa das comunidades do samba da periferia desassistida em equipamentos culturais, que não sabe o que é ter um cinema, sala de teatro, museus ou livrarias perto de casa”.

As 16 escolas do grupo C desfilaram este ano com uma média de 600/1.000 sambistas; as 13 escolas do grupo D com a média de 500/600; e a do grupo E com 350/500. Portanto,  uma massa entre 30 e 35 mil pessoas passou por essa passarela – que pode ser denominada de Passarela do Povo.

O antropólogo Roberto DaMatta publicou durante o carnaval deste ano o artigo “Carnaval & Cinzas”. Em certo momento ele destaca: “Espero que o leitor tenha se ‘esbaldado’ neste carnaval. Seja entrando na folia; seja afastando-se dela para recolher-se em alguma serra ou refúgio turístico, o que dá no mesmo. Em ambos os casos, o carnaval se faz presente pela criação e, mais que isso, pela reafirmação de que a vida sempre está em outro lugar”.

No Carnaval de Madureira as comunidades gritam que a vida deles está sendo resolvida naquele momento, naquele espaço físico. Para essas comunidades não existe o outro lugar para a vida. Até porque planejam e executam os seus desfiles para honrar sua identidade, seu chão. Uma observação curiosa. Durante os três dias de desfiles, no meio dessa multidão de espectadores e de realizadores dos desfiles, a polícia não prendeu sequer um mijão na Intendente Magalhães. Como disse um soldado: “Aqui é a casa dessa gente, tanto para os que vêm assistir como para aqueles que vêm desfilar, por isso urinam nos banheiros químicos, por mais incômodo que seja ficar nas filas, mulheres e homens. Imagine serem pegos sujando o local onde as crianças e idosos, seus familiares, estão curtindo a alegria?”.

Pois, se para Roberto DaMatta, durante o carnaval a “vida sempre está em outro lugar”, a festa de Madureira afirma outra coisa: a festa está aqui, e é aqui que se deve curtir a felicidade. Quem sabe é por isso que na mais alta madrugada, entre as duas e cinco horas da manhã, o que se vê no rastro das escolas são crianças e adolescentes, com idades que vão entre 2 e 17 anos, se divertindo. Encontrei dois casais com bebês recém-nascidos no colo. E vejam que estou escrevendo sobre Madureira, bairro abandonado na periferia da cidade do Rio de Janeiro, mergulhado em problemas de segurança, transporte, saúde e educação. Toda essa vida é impossível nesse mesmo horário em qualquer bairro da Zona Sul ou na proximidade da Marquês de Sapucaí. Pode ser que por isso muitas escolas de samba desejam continuar em Madureira, para conviver com seu povo e não com o público do Grupo Especial. Para seus dirigentes a palavra ‘acesso’ gera um incômodo, pois remete a uma ideia de uma coisa incompleta, de uma coisa que queria ser e não é. Essas escolas são!

Roberto DaMatta continua: “O governo, nega, mas o carnaval permite; a moralidade diz não, o carnaval, sim; na vida diária falamos e ouvimos discursos, no carnaval cantamos sem cantores; o real obriga o uso do uniforme e do avental, o carnaval faculta a máscara que engendra duas caras e sujeitos; na vida real somos todos visíveis, com fantasia criamos uma invisibilidade; nos trancamos em casa, mas no carnaval nos escondemos na rua. ‘Quando as pessoas intentam se passar pelo que não são, a gente sabe que é preciso uma máscara’, dizia um anônimo inglês em 1780, falando dos carnavais europeus”.

No Carnaval da Intendente Magalhães ninguém se esconde na rua, até porque aquela rua é a casa dos presentes; aqueles que desfilam e aqueles que assistem estão irmanados, não existe máscara. Eles estão integrados num só movimento comunitário. Apresentando, durante os desfiles, o estado de espírito de seus líderes, carnavalescos, a saúde financeira da agremiação e seu compromisso com um jeito único de falar, sonhar, elaborar e desenvolver projetos sociais. Estar na passarela já significa vencer. Mesmo sem ter qualquer escola mencionada na grande mídia escrita, falada ou televisionada.

“Julguei todos estes anos”, escreveu com saudosismo – também durante o carnaval - o compositor Aldir Blanc, “que a folia é dos desdentados, dos miseráveis, dos espoliados...” Este lamento somente poderia vir de pessoa que não conhece o que acontece em Madureira. O mesmo distanciamento do carnaval popular está nítido no texto do jornalista Cesar Tartaglia: “Os desfiles não são feitos por escolas de samba, são no máximo escolas com samba – ou algum ritmo que mais se assemelha à marcha do que ao formato consagrado por gênios como Silas de Oliveira e Mano Décio”.

Tanto Aldir Blanc como Tartaglia poderiam reservar um tempinho na suas agendas no próximo carnaval de 2012 para conferir o carnaval dos desdentados, dos miseráveis, dos espoliados. Mergulhar na viva tradição do samba de escolas como Unidos de Lucas e Matriz de São João de Meriti, Império da Praça Seca e Mocidade Unida de Jacarepaguá, Unidos de Cosmos e Acadêmicos de Vigário, Unidos de Vila Rica e Rosa de Ouro. Penso que o antropólogo Roberto DaMatta teria um amontoado de informações para escrever mais um livro genial. Constatariam perplexos: o carnaval do povo existe!

A Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro, onde se reúnem as agremiações dos grupos C, D e E, demonstra vigor e criatividade, além do compromisso com o samba. Através de uma parceria com o Centro de Referência em Inteligência Empresarial (Crie - Coppe/UFRJ) identificou 600 currículos de profissionais com perfil para compor o Corpo de Jurados do Carnaval deste ano. E promoveu um curso para os 60 escolhidos, com orientação acadêmica da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Esses profissionais deram as notas este ano, fazendo surgir, pela primeira vez na história do carnaval, um corpo de jurados com uma visão científica. Desta maneira, entendo eu, o carnaval não somente não morreu, vive com suas tradições e continua sua evolução permanente. No caso do desfile de Madureira, continua sua evolução respeitando as tradições. Tanto que é, ali, nessas agremiações, que se formam as futuras passistas e baianas, os futuros mestres-sala e porta-bandeiras, assim como os carnavalescos e puxadores entre tantos outros profissionais da festa popular. Por esta razão, existe a afirmativa de que é nessa passarela que germinam os futuros carnavais.

*Luiz Carlos Prestes Filho é autor dos livros: "Economia da Cultura - a força da indústria cultural do Rio de Janeiro (2002)", "Cadeia Produtiva da Economia da Música (2005)" e "Cadeia Produtiva da Economia do Carnaval (2009)". É vice-presidente da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC) e vice-presidente Cultural da Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ)

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