terça-feira, 4 de outubro de 2011

A estratégia chinesa e o contraditório

Edberto Ticianeli

Com a prisão e tortura dos militantes do Partido Comunista Revolucionário (PCR), em 1973, encerrou-se em Alagoas um ciclo histórico do movimento estudantil e de resistência à Ditadura Militar. Por um período, ninguém da esquerda se mexia. Somente em 1976 foram registradas novamente mobilizações políticas contrárias ao regime ditatorial. O Diretório da Área III da UFAL (Humanas) foi um dos primeiros alvos das forças de esquerda. Correndo por fora do movimento estudantil, os estudantes também descobriram que podiam se organizar em partidos políticos. Havia uma brecha na legislação partidária que permitia a formação do setor universitário. Assim, o MDB Universitário também foi ocupado por correntes de esquerda.

Participei ativamente desses movimentos, o que lentamente transformou a nossa casa no bairro da Ponta Grossa, em Maceió, em ponto de encontro da nova geração da esquerda. Além de oferecer o local para a reunião, meu pai, Gilberto Soares Pinto, também proporcionava o apoio alimentício, que quase sempre se resumia a uma sopa preparada por minha mãe, Celina Ticianeli. Era uma boa chance para o velho comunista apresentar as suas exposições “pedagógicas”. Anos e anos de militância no Partido Comunista Brasileiro haviam lhe inculcado a noção de que um revolucionário sempre está atento às oportunidades para defender o socialismo.

Num final de tarde de um dia chuvoso de 1977, o “sopão da resistência” mal começara a ferver num caldeirão e o debate já corria acalorado na sala. Júlio Bandeira, estudante de medicina e morador do bairro, provocava o velho comunista:

- E então, “seu” Gilberto? Explique essa posição da China comunista de se aproximar dos Estados Unidos, principalmente num momento em que há atritos na fronteira entre os dois países, até com ameaça de guerra. Isso está me cheirando a traição ao socialismo. Como o senhor explica o que aconteceu em 1972, com Mao Tsé-tung recebendo Nixon de braços abertos?

- Meu filho! Já vi que você não entende nada de estratégia - reagiu o experiente comunista -, e continuou:

- Veja bem: os chineses simulam um conflito com a Rússia e atraem os Estados Unidos para uma falsa aliança. Quando os americanos estiverem com os seus exércitos em solo chinês para enfrentar os russos, aí vem a surpresa. Os exércitos chineses e russos esmagam os americanos, entendeu!

Não. Ninguém entendeu e nem concordou. O debate continuou acalorado e só foi interrompido quando o estudante de direito José Soares, o Joinha, que andava precisando fazer as pazes com o velho e esperava ansioso pela sopa, se meteu na conversa.

- Muito bem “seu” Gilberto! O senhor está certo. Agora, eu acho que a gente devia continuar essa conversa tomando uma sopinha, antes que ela esfrie.

Durante e após a sopa a discussão mantinha-se acesa. Somente com uma pequena mudança de opinião. Joinha, que nunca perdeu uma oportunidade de brincar com o velho, ponderou:

- “Seu” Gilberto, pensando bem, agora de barriga cheia, eu acho que o senhor está totalmente errado.

As gargalhadas não encobriram os adjetivos que “seu” Gilberto endereçou ao “cientista político” Joinha. O clima ficou tenso e a maioria achou que já era hora de ir embora, menos o Thomaz Beltrão, que ainda muito jovem e vendo o aperreio do velho, tenta acalmá-lo:

- Mas “seu” Gilberto! Como é que o senhor defende uma ideia dessa. É insustentável, “seu” Gilberto!

Meu pai, que tinha pelo Thomaz uma atenção especial, resolveu explicar o porquê da sua defesa da estratégia chinesa.

- Olhe bem, Thomaz! Eu já estou velho e até os fogões, que me ajudavam a gastar o tempo, quem conserta é o Zé Chaves, então tem que ter o contraditório!

- Como assim? - Indagou Thomaz, sem compreender.

- É simples. Se eu tivesse concordado desde o começo, não teria discussão. Tem que ter o contraditório para ter a discussão. O mais importante é a discussão, entendeu?

Thomaz fez que entendeu e foi embora sem o usar o direito ao contraditório.  

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