terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Memórias do Cadeião

Edberto Ticianeli
Cadeião da Praça da Independência, em Maceió

Os presos do golpe militar de 1964 em Alagoas foram levados para o velho Cadeião da Praça da Independência. O presídio, construído em meados do século XIX e demolido definitivamente em 1970, oferecia condições precárias para receber as dezenas de acusados e perseguidos pelo regime ditatorial.

As celas eram insalubres e as instalações sanitárias não mereciam essa denominação. Um latão ficava num canto da cela servindo de vaso. A alimentação dos presos era preparada no mesmo ambiente em improvisados fogareiros e se resumia a porções de arroz, feijão e alguns rabos de bacalhau.

Meu pai, Gilberto Soares Pinto, um dos presos de 64, foi levado para uma dessas celas com mais nove outros detidos. Era militante do Partido Comunista Brasileiro e negociante de livros usados em um pequeno espaço no pé-de-escada de um prédio da Rua 2 de Dezembro, no Centro de Maceió.

A acusação contra ele era a de que vendia livros que pregavam o comunismo. Mas não eram somente os livros que vendia que tratavam do comunismo. Gilberto pregava abertamente seus ideais libertários nas inúmeras aglomerações que aconteciam no estreito espaço defronte ao seu estabelecimento. Público não faltava, já que no andar superior do prédio funcionava, à época, o forte sindicato dos trabalhadores da Petrobrás.

No Cadeião, os presos conversavam preocupados com a ameaça da transferência deles para a Ilha de Fernando de Noronha. Corria a boca miúda que de vez em quando, durante o transporte para lá, atiravam do avião alguns dos presos ao mar. As famílias e amigos se mobilizavam para impedir a transferência. Os advogados tentavam inutilmente relaxar as prisões. Nada fazia diminuir o terror que rondava os presos políticos do Cadeião.
Praça da Cadeia em 1960.

Mesmo com essa ameaça, alguns presos mantinham a decisão de não facilitar a vida da polícia. Era o entendimento de que a luta continuava na prisão. Um deles era Gilberto Soares Pinto, que cumprindo essa decisão, agia nos limites da inconsequência.

...

Como sempre acontecia pela manhã, o policial percorria as celas contando os presos e conferindo a relação. Pelas repetidas idas e vindas, parecia que alguma coisa não estava certa nas suas anotações.

–– Tem alguém aqui que ainda não tirou retrato? Perguntou aos presos da cela onde estava Gilberto.

Todos responderam que sim. O indivíduo coçou a cabeça. Revisou o papel que estava na mão e foi embora. Minutos depois voltou e perguntou novamente a mesma coisa. Como as respostas foram as mesmas, ele pegou algumas fotos e começou a comparar com os rostos dos presos.

–– Gilberto, o senhor tem certeza que tirou a foto?

–– Claro que tirei. Como diabos eu ia esquecer de uma coisa dessas.

–– É porque ela não está aqui. Acho que ficou na secretaria. Vou lá olhar de novo.

Não demorou muito e o indivíduo voltou, agora com cara de poucos amigos.

–– O senhor está de brincadeira comigo? Na relação da secretaria não consta que você já tirou a foto.

–– Realmente, eu não tirei foto nenhuma aqui.

–– E porque então mentiu?

–– Eu não menti. Você é que não soube perguntar. Você perguntou se eu já tinha tirado foto e eu respondi que sim. Estão todas lá em casa.

...


Domingo pela manhã, o capelão chega ao corredor e convida os presos para assistirem uma missa no pátio interno do Cadeião. As celas são abertas e quase todos saem para o corredor, esperando a ordem para se dirigirem ao culto.

Gilberto, que foi um dos poucos que ficou na cela, não compreendeu como tantos comunistas iam rezar. Esperava que todos fossem ateus como ele. Julgou que aquilo era uma verdadeira traição e resolveu provocá-los.

–– Capelão! Esses aqui são todos ateus e covardes. Vão rezar porque estão com medo de morrerem em Fernando de Noronha. Estão renegando o comunismo. –– discursou para o todo o corredor ouvir.

Se não fosse o fato da grade já ter sido trancada, haveria o trucidamento de um comunista por parte dos seus camaradas revoltados. Foi preciso muita conversa e tempo para que o clima na cela pudesse voltar ao normal. 

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