domingo, 26 de fevereiro de 2012

O neoliberalismo atropela seus mitos

Saul Leblon - Carta Maior

Um trem de passageiros breca na entrada da estação mas o freio não responde; a composição com mais de mil pessoas a caminho do trabalho tromba numa barreira de concreto. O segundo vagão esmaga o primeiro e assim, sucessivamente; o efeito dominó mata 50 pessoas e fere outras 700. A decifração do desastre que abalou a Argentina esta semana inclui particularidades que materializam uma discussão recorrente nas sociedades submetidas à onda de privatizações de serviços públicos dos anos 80/90, mitigadas mas não interrompidas nas décadas seguintes pelos governantes da região. O do Brasil entre eles. 

A composição argentina faz parte da concessionária Trens de Buenos Aires, a TBA, uma das vencedoras de leilões de privatização promovidos pelo governo Menén, há vinte anos, com consequências métricas autoexplicativas. A ferrovia argentina que figurava como a 10ª maior rede do mundo antes da segunda guerra foi fatiada e privatizada nos últimos anos. Dos 50 mil kms de trilhos originais restam 7 mil kms operacionais. Dos 50 mil funcionários integrados ao sistema, sobraram 15 mil. Não é uma exceção. No caso brasileiro, por exemplo, os procedimentos e suas consequência também produziram um saldo contundente : dos 40 mil kms de trilhos existentes nos anos 60 restam 28 mil kms; a privatização sucateou enormes extensões de ferrovias, reduziu milhares de vagões e centenas de locomotivas a ferro-velho e ferrugem; o país praticamente aboliu o transporte ferroviário de passageiros, despautério logístico que a entrega do setor à lógica privada deveria justamente evitar. 

O desastre argentino acrescenta duas facetas a esse acervo: ao longo dos últimos anos a TBA recebeu subsídios da ordem de US$ 3,6 bi do Estado para investir em melhorias na rede. Apenas 6% desse total, acusa-se, teria chegado na ponta final do sistema onde estão os passageiros. Pior: um destino desse parco investimento teria sido remodelar vagões dos anos 60, trocando assentos originais por outros menores e precários, mas adequados à maximização da lata de sardinha. O up grade pode ter sido uma razão adicional para a matança decorrente da colisão ocorrida com o trem da TBA.

Seria medíocre reduzir o desastre ferroviário desta semana na Argentina a um desfrute ideológico do equívoco neoliberal na América Latina. É preciso ir além e não omitir a pergunta incomoda: por que os governos progressistas subsequentes não reverteram o processo; ao menos, não impuseram padrões de atendimento que respeitassem os usuários do patrimônio público alienado? A resposta confronta um alicerce da doutrina neoliberal e coloca em xeque crenças e argumentos que embalam as privatizações de ontem e de hoje. 

O nome da viga mestra é agencia reguladora. Sobre ela apoia-se o escopo de um mito: a idéia de que é possível ter um Estado precário, frágil financeiramente, incapaz de investir, prover e contratar serviços públicos adequados mas, ao mesmo tempo, proficiente para instalar um aparato de tutela sobre concessões, a ponto de torná-las não exclusivamente mais lucrativas que o padrão anterior -- o que todas são, naturalmente. Mas, sobretudo, mais eficientes no atendimento à população. O desnudamento desse mito argui mais os seus discípulos à esquerda do que à direita.

As evidências cumulativas, às quais se agrega o desastre de Buenos Aires, desmontam essa sapata do edifício privatizante. No Brasil, agencias reguladoras lembram seixos perdidos na correnteza de interesses em torno das concessões e vendas de rodovias, telefônicas, sistemas elétricos, portuários e, agora, aeroportuários. 

Capturadas por eles, as reguladoras, ao contrário do que sugere a ficção neoliberal são uma costela do mesmo aparato acuado, não raro, submisso, do Estado mínimo. O fato desagradável para alguns é que elas figuram como frutos da mesma família genética da qual fazem parte a supressão de direitos sociais, o arrocho trabalhista e, claro, o sucateamento do aparato público. Vieram para dar harmonia institucional a esse conjunto, não para afrontá-lo. A inversão do regulador capturado pelo regulado, ou avidamente associado a ele, tem nas agencias de risco do sistema financeiro uma expressão de exuberância explícita dessa lógica. Mas há versões mais sutis, não menos amigáveis a seu modo. 

A brasileira Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por exemplo, resume um padrão. Reguladora do sistema rodoviário, conta com apenas 117 funcionários para fiscalizar 5 mil kms de estradas federais privatizadas em um território de 8,5 milhões de km2. Em breve, serão 10 mil kms de pistas por conta dos leilões programados. 

Protagonistas desse enredo de faz de conta às vezes lamentam o simulacro do seu ofício, como é o caso dos integrantes da Comissão Nacional de Regulação de Transportes da Argentina. Depois do acidente, eles denunciaram a impotência e inutilidade de advertências anteriores sobre a precariedade do sistema. Outros, porém, exacerbam na tarefa e dar harmonia ao conjunto. O governo direitista da Espanha, dotado de robusto programa de privatização e austeridade ortodoxa, anunciou nesta 6ª feira a fusão das oito agencias reguladoras do país. A partir de agora elas integram um único guarda chuva, que reduz de 52 para 9 o número total de conselheiros. Quase um emblema do credo neoliberal no Estado mínimo, ela responde pelo pomposo batismo de Comissão Nacional de Mercado e Competência. A retrospectiva autoriza usuários a enxergarem nesse binômio um faiscante oximoro.

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