quinta-feira, 12 de março de 2009

E Deus disse: antes o estupro do que o aborto! Ou, sobre a estranha escala de valores da Igreja Católica

Rodrigo Barros Gewehr

Não posso escapar a certo mal-estar com a recente notícia da excomunhão de alguns médicos em Pernambuco, por conta de aborto legal realizado em uma jovem de nove anos, que vinha sendo sistematicamente estuprada pelo padrasto, e que acabou grávida deste.
Ao saber disso, infelizmente não fiquei pasmo; apenas constatei o que já imaginava: a Igreja continua sendo um atraso social e deveria ser impedida judicialmente de manter a tutela sobre a religiosidade. O que se toma por uma defesa dos valores da vida não passa de um dogmatismo assentado em ideais já raquíticos, para não dizer apodrecidos. Estar mais preocupado com os códigos canônicos do que com a realidade concreta dos fatos sociais é uma estupidez e uma vergonha.
Todavia, isso tem seu lado positivo: comprovamos definitivamente que é preciso separar com bisturi a religião e a religiosidade. A Igreja sempre manteve seu poder – muitas vezes com uso da força bruta – tendo por base a idéia de que cabe a ela tutelar, coordenar, direcionar a relação do Homem com Deus; e seus ritos têm (ou tinham) justamente a função simbólica de elevar a atenção humana no sentido de verdades espirituais.
Faz tempo que estes ritos se encontram algo esvaziados, o que pode muito bem ser entendido como um prejuízo, haja vista que os rituais possuem uma função social e psicológica importante. Entretanto, além disso, a própria instituição católica está desgastada, com casos inúmeros de perversão no seio da santa Igreja, o que sem dúvida deveria servir para nos alertar quanto aos perigos subterrâneos e sorrateiros de toda instituição que se torna dogmática e demasiadamente aferrada a seu poder.
É ridículo ver que a Igreja gasta mais tempo protegendo as luxúrias de seu clã do que estudando uma situação social delicada como esta da menina pernambucana. É fácil excomungar uma equipe médica que cumpriu seu dever profissional e cívico, difícil é ver a Igreja Católica discutindo abertamente os casos de pedofilia, os encontros amorosos no interior de seus claustros, a AIDS que ronda os corredores e quartos dos seminários e paróquias. Não me consta que os santos Cruzados tenham sido excomungados pelos corpos que deixaram para trás a caminho de Jerusalém. Não me consta que a pedofilia na Igreja tenha sido punida com excomunhão. Não! A excomunhão – penalidade máxima, cartão vermelho – é reservada para “criminosos” como os médicos em questão. Abusar de crianças, ah... Isso é contornável!
Recentemente, a Igreja Católica se pôs em alerta por conta de um bispo britânico que negou publicamente o Holocausto. O caso ganhou proporções significativas na Europa, inclusive com a interferência de chefes de Estado, o que obrigou a Igreja, que havia reabilitado recentemente o bispo de sua excomunhão de vinte anos, a dar um puxão de orelha neste e fazê-lo retratar-se. Claro que este evento é político, pois a Igreja não quer se indispor com o Estado judeu e a ferida nazista não está cicatrizada, de modo que a ação da Igreja foi rápida e precisa e politicamente sagaz.
Tanto quanto foi rápida, imprecisa e ignorante a resposta ao caso da jovem pernambucana. Mas que importância política tem uma jovenzinha pernambucana pobre? Neste caso, aplica-se a lei canônica ao pé da letra, sem se interrogar, por exemplo, se aí também não houve uma forma de assassinato psíquico e social. E a Igreja, através de seu porta-voz em Recife ainda tem a tranqüilidade de dizer que o estupro é um mal menor do que o aborto, ou ainda pior – esta uma pérola de obscurantismo medieval: que está proclamando a lei de Deus.
Pura e simplesmente isso: está defendendo a lei de Deus. Logo, é a portadora da verdade absoluta. Mas não! Está mais do que na hora de realizarmos uma revolução profunda nos costumes! Se Deus está morto na sociedade contemporânea, foi a Igreja mesmo que tratou de matá-lo (a propósito, é compreensível ver que Nietzsche atribui justamente à Igreja o papel de Anticristo...). E se há alguma chance de reencontrar Deus neste mundo conturbado, ela passa pela emancipação da religiosidade. Ou seja, é preciso crescer e deixar as Igrejas de lado, buscar novos ritos que sustentem a ânsia pelo sagrado, pois a Igreja virou mais mundana do que as mundanidades que condena.
E eu... eu felicito os médicos que foram ou serão excomungados: é realmente uma honra, neste caso, ser expulso de campo. Congratulações!


Rodrigo Barros Gewehr é professor de Psicologia da UFAL e faz doutorado na França.

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