domingo, 6 de abril de 2008

Na Kombi com Brizola

Artigo de Vitor Hugo Soares publicado em O Globo e no Blog do Noblat

Quando a Operação Condor fechava o cerco aos líderes políticos mais resistentes às ditaduras instaladas nos principais países da América do Sul, eu trabalhava no Jornal do Brasil. Na época, estive com Leonel Brizola na sua estância no Departamento de Durazno, no Uruguai, pouco antes de ele ser expulso do país vizinho por imposição do governo Geisel, e partir para os Estados Unidos - então governado pelo democrata Jimmy Carter -, para cumprir a segunda etapa de prolongado e agitado exílio.

Ao volante da maltratada Kombi de entrega do leite produzido na fazenda, que tanta polêmica e informações desencontradas causavam na época - não raramente falsas -, o ex-governador cobrava notícias do Brasil ao visitante. Próximo ao povoado de Carmen, Brizola fez um comentário que merece reflexão nesta semana em que se completam 44 anos do golpe que derrubou o presidente João Goulart – e mais de 30 da conversa: "Anote baiano: em menos de 20 anos Portugal estará livre dos reflexos mais danosos do recém-extinto regime salazarista. No Brasil, os danos da ditadura levarão mais de 50 anos para passar".

A previsão do indomável gaúcho de Carazinho tem sido recorrente para o autor destas linhas ao longo das últimas três décadas. A lembrança, no entanto, se acentuou nestes últimos dez dias de março e abril de 2008, depois de algumas leituras e observações sobre fatos e personagens dos idos de 64, em geral confirmadores das palavras do falecido Brizola.

As mais agradáveis, sem dúvida, saltaram das páginas do livro "Confissões de um Capitão", de Carlito Lima, cujo exemplar me veio de Maceió pelo Correio, com delicada dedicatória do autor, uma dessas figuras fora de série, que só recentemente descobri de passagem por Alagoas. Militar da melhor reserva do Exército, quando serviu na Companhia de Guardas do Recife, ele foi carcereiro de figuras legendárias do País, como Miguel Arraes, Francisco Julião, Paulo Freire e Gregório Bezerra, entre dezenas de outros que curtiram celas de cadeia na chegada dos militares ao poder.

Boêmio de respeito e fama no Nordeste, Norte e Sudeste, engenheiro, escritor, o capitão foi prefeito de Barra de São Miguel – município a alguns quilômetros de distância da cidade de Palmeira dos Índios, que o alagoano Graciliano Ramos governou e imortalizou em sua obra literária de mestre.

Carlito Lima, bom de copo, de papo e de pena, não é, evidentemente, um novo Graça mas surpreende com a sua narrativa singular e sincera sobre um dos períodos mais drásticos e contraditórios da historia recente do País. Tem razão o cineasta Cacá Diegues ao considerar que "Confissões de um Capitão" é relato forte, humano, às vezes bem-humorado, outras vezes pungentes e trágicos, "mas sem aquele rancor ou aquela demagogia que, em geral, impregna e compromete muita obra sobre essa época e esse assunto".

De fato: as memórias do oficial alagoano é leitura que agarra o leitor pela emoção. Principalmente nos capítulos sobre estreita - e não raramente providencial - relação do autor com os presos políticos de Pernambuco em uma das fases mais agudas do golpe para instalação do governo discricionário. Tocantes e significativos episódios transcorridos em instalações militares, salões, ruas, praias e botequins da capital alagoana, Salvador, Manaus e Rio de Janeiro, comprovam que a delicadeza, a solidariedade e as lições de respeito à dignidade humana, não se perderam de todo no meio da selvageria ou do oportunismo engendrados em círculos de poder, na confusão da chegada do novo tempo, apoiado no arbítrio e na força bruta.

No outro lado da ponte, a linha do tempo dos chamados anos loucos, ainda espera desvendamentos essenciais, com respostas transparentes e respeitáveis como as que estão presentes no livro de memórias do capitão Carlito Lima – recentemente lançado também, junto com outras obras do ex-carcereiro de Arraes, na Feira Internacional do Livro de Havana.

É isso que se vislumbra em notícias destes últimos dias, a exemplo da nitroglicerina espalhada pela entrevista exclusiva ao Jornal do Brasil (trechos relevantes foram - reproduzidos no Blog do Noblat), de outro oficial da reserva do Exército - tenente José Vargas Jimenez - sobre episódios nos quais ele afirma ter tido participação direta ou testemunhal, durante as operações de combate à guerrilha nos recônditos da selva amazônica.

Jimenez mexe em feridas ainda abertas, com reflexos em áreas mais duras e sensíveis dos quartéis e da política de Brasília. Mexe principalmente com sentimento de dor e de esperança de dezenas de famílias em vários estados do País, cujos entes queridos se perderam na tragédia de Xambioá. Especialista em guerra na selva, posteriormente homem de inteligência do Exército, até 1994, Jimenez fez revelações estarrecedoras ao JB. "Nós entramos para matar, destruir, A ordem era atirar primeiro e perguntar depois", diz o militar em um dos trechos da entrevista.

O tenente fala de locais onde talvez possam ser encontrados ainda restos mortais de militantes do PC do B, e admite que os militares entraram na área com o propósito pré-fixado de exterminar os guerrilheiros. Diz também, sem meias palavras, que a tortura a prisioneiros e moradores da região suspeitos de abrigar ou auxiliar militantes, era prática comum para obter confissões.

No Araguaia perdi alguns dos melhores amigos, colegas de turma e contemporâneos do tempo de estudante na Universidade Federal da Bahia (UFBA): Rosalindo, Dermeval, Dina, Antonio Monteiro, Dinaelza e Wandick, dentre outros. A Bahia perdeu alguns de seus jovens mais generosos. Conforta, ao menos, ter lido esta semana, que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara aprovou, por unanimidade, requerimento de audiência pública sobre a Guerrilha do Araguaia.

Mais que isso, é fundamental, urgente até - em especial para os familiares dos mortos e desaparecidos -, oferecer esclarecimentos cabais sobre estes e outros episódios nebulosos. Sob pena das sombras e escombros de 64 seguirem pairando sobre o País. Por mais tempo ainda que o meio século previsto por Leonel Brizola dentro da Kombi de entrega de leite no exílio.

Vitor Hugo Soares é jornalista. E-mail: vitors.h@ig.com.br

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