quinta-feira, 17 de abril de 2008

Crise na Assembléia e Mobilização Popular

Artigo de Golbery Lessa (Cientista social, Doutor/Unicamp)

As firmes ações da Polícia Federal, do Ministério Público, da Imprensa e da sociedade civil organizada têm sido fundamentais para o início do processo de renovação radical que a Casa de Tavares Bastos precisa passar para honrar a memória de seu ilustre patrono e a fibra do povo que a instituiu e financia. Entretanto a sociedade civil organizada, o elemento mais importante em qualquer processo de renovação das práticas e da cultura políticas, tem cometido grandes erros (por ações e omissões) nos seus processos de organização e mobilização e nas análises que tem feito dos acontecimentos. Mesmo sem tirar o mérito de tudo que já foi feito pelo MSCC (Movimento Social contra a Corrupção e o Crime) e pelas entidades ligadas a alguns setores empresariais empenhados na causa, é necessário discutirmos abertamente esses erros para que não se perca a grande oportunidade que a história está oferecendo aos alagoanos por falta de coragem intelectual e política.
O Legislativo é o principal foco da atividade política numa formação social por que tende a expressar de maneira mais completa a diversidade da sociedade civil. O Executivo e o Judiciário são mais sintéticos, representam, respectivamente, a vontade da maioria no que se refere à execução das leis e à sua interpretação. A atual crise de confiança vivida pela Assembléia Legislativa Alagoana tem, portanto, uma importância decisiva para o futuro da prática e das idéias políticas em Alagoas, com reflexo direto nas possibilidades de desenvolvimento sócio-econômico do Estado. A crise é, portanto, essencialmente política, ou seja, referente àquela esfera da prática social na qual a sociedade debate e resolve seus problemas imediatos universais.
O principal erro do MSCC está expresso no seu próprio nome. A entidade formou-se e designa-se como “movimento social”, ou seja, uma organização não diretamente política, um órgão disposto a agregar um conjunto de indivíduos com determinada reivindicação setorial. Trata-se de um movimento focado apenas na luta contra o crime e a corrupção, que são somente dois dos múltiplos elementos envolvidos na crise atual. O crime e a corrupção só podem ganhar importância na luta e na manutenção do poder quando o sistema democrático é negado na sua essência, o que é determinado por particulares características econômicas e culturais que uma formação social pode desenvolver. É uma determinada configuração perversa do sistema sócio-econômico e da cultura política (grande concentração da renda, atraso radical da industrialização, baixo grau de urbanização e alta concentração fundiária e outros elementos com efeitos análogos) que fragilizam o Estado de Direito e tornam possível a emergência do crime e da corrupção no espaço político. Ou seja, o crime e a corrupção são efeito e não causa da fragilização do espaço democrático e, portanto, a mobilização da sociedade civil organizada precisa ser pela mudança radical das práticas políticas arcaicas (mandonismo, clientelismo, patrimonialismo, nepotismo e a compra do voto) e das idéias que as fundamentam; o combate ao crime e à corrupção deve ser uma das ações nesse universo, não a única ou a principal. É preciso, por exemplo, lutar para mudar as formas de fazer campanhas eleitorais, de elaborar programas políticos e de exercer mandatos eletivos. A tarefa essencial é mudar toda a cultura e as práticas políticas.
É política a essência das tarefas da sociedade civil alagoana diante da crise do Legislativo e das tradicionais práticas ilegítimas e ilegais de disputa pelo poder. A atitude do MCSS constituiu uma situação bastante esdrúxula: no momento em que o núcleo das velhas práticas mandonistas é gravemente fragilizado no interior da Assembléia, na conjuntura em que essa fragilidade abre um espaço enorme para novas lideranças e para o avanço das forças populares e das práticas democráticas, no instante em que o vazio de poder aberto pela crise abre as mais positivas possibilidades e os mais graves perigos de retrocesso, as principais entidades da sociedade civil decidem não fazer política, escolhem regredir para uma atitude de reivindicar mudanças setoriais. Os grandes adversários do progresso de Alagoas caem pelas tabelas e, em resposta, a sociedade civil não tem demonstrado lucidez nem capacidade de propor um novo projeto que promova novas práticas e novos valores políticos para o Estado.
A falta de adesão massiva da população alagoana aos atos públicos propostos pelo MSCC já deveria ter feito as principais lideranças repensarem o perfil e os rumos da entidade. Nas manifestações promovidas pela entidade têm estado presentes principalmente os movimentos agrários, o movimento indígena, algumas lideranças estudantis, figuras representativas do movimento de mulheres e representantes dos sindicatos urbanos (apenas as lideranças desses sindicatos). A classe trabalhadora urbana (enquanto massa) e a classe média, dois pólos fundamentais de qualquer mobilização, estão ausentes. Isso ocorre porque o fala, a prática e as formas de mobilização propostos pelo MSCC não estão adequadas à expectativa da maioria da população, que deseja um verdadeiro programa político, com começo, meio e fim. Ninguém sairá as ruas para constituir novas lideranças se não tiver garantias que não estará contribuindo para instituir novos déspotas; o cidadão consciente não irá até a porta da Assembléia sem que antes perceba a emersão de lideranças capazes de demonstrar, por meio de suas idéias e propostas de controle social sobre sua própria atuação, que merecem respeito e confiança.
As entidades empresariais mobilizadas pela modernização das práticas e dos valores políticos têm cometido os mesmos erros do MSCC, com algumas singularidades (os usineiros ainda não se manifestaram publicamente sobre o assunto, o que parece demonstrar que não estão muito dispostos a mobilizarem-se pela modernização política do Estado). Assim como o MSCC, essas entidades não apresentam um programa concreto e positivo, além disso sequer ensaiam um chamamento à participação massiva de seus associados nos atos públicos, uma das principais formas de fazer política na sociedade contemporânea. Seguem fazendo política de cúpula e de notas à imprensa, como se tivessem receio de uma aliança com os trabalhadores e com a massa da classe média. Essas entidades ainda precisam provar para o resto da população que os setores empresariais que representam estão verdadeiramente dispostos a dar sua cota de sacrifício pelo bem comum.
Em qualquer esquina ou no interior das residências é fácil aquilatar o alto grau de revolta e de potencial de mobilização em torno da crise da Assembléia Legislativa. Há um sentimento generalizado de repulsa ao status quo e expectativa sobre os novos rumos que pode tomar o universo político; as pessoas querem novas práticas, novos valores, novas lideranças, nova forma de fazer campanha eleitoral e de cumprir os mandatos. Mas esse sentimento generalizado não está sendo convenientemente organizado num grande caudal de renovação e civismo; falta uma entidade coletiva diretamente política, falta um fórum pela renovação das práticas e dos valores políticos em Alagoas, um órgão capaz de congregar todos os indivíduos dispostos a realizar a modernização completa do universo político estadual. Um fórum com reuniões amplas e regulares, nas quais qualquer habitante do Estado pudesse dar seu depoimento, fazer seu desabafo sobre as mazelas da sociedade alagoana, conversar com especialistas em cada tema e fazer suas propostas de mudança; um órgão capaz de realizar na sua prática os valores republicanos; uma entidade capaz de formular, junto com todo o povo, novos projetos e de ser uma referência de discussão legislativa enquanto perdurar o vazio de poder legítimo no Legislativo alagoano.

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