![]() |
Passistas em Recife em1947. Foto Pierre Verger |
No rescaldo
das cinzas carnavalescas, a polêmica que dominou as redes sociais foi o
discutível patrocínio que a campeã, Escola de Samba Beija-Flor, recebeu do
ditador da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que há 35 anos
comanda o país africano. O enredo da campeã foi: "Um Griô conta a
história: um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos
sobre a trilha de nossa felicidade".
Sem diminuir
a importância de se discutir os interesses dos patrocinadores dos desfiles
milionários das escolas de samba, que podem receber apoio de bicheiro,
traficante, político, ditador ou Rede Globo, destaca-se nesta polêmica o
envolvimento emocional de alguns internautas, assumindo claramente a postura de
torcedor.
Em Alagoas,
vários comedores de sururu manifestaram preferência por alguma escola de samba
carioca. A pergunta que surge destas manifestações é: por que escola de
samba tem torcida? E pior: por que uma escola de samba carioca tem torcida em
Alagoas?
Sem
pretensão de responder a questões tão complexas, no máximo pode-se apresentar
algumas pistas.
Carnaval
festa X Carnaval espetáculo
Independente
das incertezas sobre a origem do carnaval e das imprecisões históricas sobre a
sua evolução até os dias de hoje, pode-se afirmar que o carnaval é uma festa.
Segundo o historiador Hiram Araújo, “O carnaval é a segunda vida do povo,
baseada no princípio do riso. É a vida festiva”.
É uma festa
de rua e assim atravessa séculos, vencendo até a teimosia da igreja católica,
que repudiava o carnaval. Mas, em pleno capitalismo industrial, o carnaval
começa a sofrer mudanças profundas. Assim, no Brasil do final do século XIX e
início do XX, as ruas das modernas cidades, que desde o século XVII recebia os
brincantes do carnaval, se transformam em espaço controlado pelo poder, que
estabelece normas de acordo com os seus interesses políticos, sociais e
econômicos.
As novas
cidades negam espaço ao anárquico e “sujo” entrudo, com suas seringas e limões-de-cheiro.
Ele é proibido, dando lugar ao confete, serpentina e lança-perfume. Surgem nas
novas avenidas os desfiles das sociedades, ranchos e dos cordões carnavalescos –
que deram origem aos blocos -, além de criar condições para receber o corso. Os
bailes carnavalescos em clubes se multiplicam.
Entretanto,
o carnaval como festa começa a ser ameaçado quando, em 1913, os ranchos
carnavalescos do Rio de Janeiro abandonam os seus tradicionais espaços de
desfile e se deslocam para o Passeio Público, onde, em frente ao Jornal do
Brasil, foi montada uma comissão julgadora para definir quem receberia um
troféu de bronze oferecido pela Cervejaria Hanseática. Esta inovação partiu de
três cronistas carnavalescos: Vagalume, Miúdo e Picareta.
A partir de
1930, com Getúlio Vargas no poder, e já com a presença dominante das escolas de
samba, os desfiles continuam a receber prêmios, mas sofrem descontinuidade. Somente
em 1935 é que Vargas baixa um decreto regulamentando os desfiles, tornando-os
oficias. Recebiam subvenções, mas tinha que adotar enredos que traduzissem os
objetivos políticos do governo federal. Nas décadas de 60 e 70, a classe média
desembarca nas escolas de samba provocando a “revolução estética”, e nos anos
80 acontece a “revolução econômica”, com as escolas de samba sendo adequadas ao
tempo e as exigências das televisões, para quem se apresentam em troca de grandes
aportes financeiros.
Competição
gera espetáculo
Assim, 102
anos após um Picareta, um Vagalume e um Miúdo terem investido numa competição,
as escolas de samba deixaram de ser cordões carnavalescos, uma festa do povo, e
se transformaram numa engrenagem complexa que envolve muita grana e pouca
espontaneidade, característica fundamental para a festa.
O pior é que
esse modelo de carnaval como competição se espalhou pelo país, provocando o
empobrecimento do carnaval como festa. Felizmente, nem todo mundo copiou isso,
e o carnaval como festa resistiu e hoje experimenta um crescimento. Os blocos
proliferam em todos os recantos do Brasil, sem nenhuma preocupação em serem os
maiores ou melhores. Se organizam para brincar o carnaval. O brincante volta a ser
o personagem central do carnaval.
Um bloco de
brincantes é muito diferente de um grupo que se organiza para ganhar um prêmio
ou subvenção pública. Nestes, tem que ter muito ensaio e produção, suprimindo a
espontaneidade. Uma escola de samba do Rio de Janeiro tem tempo de desfile
determinado, todos os seus movimentos são ensaiados e não se pode beber durante
o desfile. Isso é uma festa?
Por estas
razões, não torço por escola de samba e nem acho relevante saber se os
patrocinadores são bicheiros, traficantes, políticos, ditadores ou rede de
televisão. Preocupo-me mais em saber quantos blocos carnavalescos estão nas
ruas, criando momentos de pura festa, mantendo o carnaval como um evento para o
riso, sem as tensões de ter que vencer alguém numa disputa. Torço mesmo é para que
o fim das competições aconteça também na vida normal dos cidadãos. Vamos
FESTEJAR o carnaval e humanizar a vida. Chega de ver o próximo como alguém a
ser vencido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário