segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O toucinho subversivo

Blog do Ricardo Mota - Tudo na Hora - 17/08/2008

A célere passagem do calendário tratou de tornar a cena tão ridícula quanto ela sempre mereceu ser. De um lado, este malsucedido compositor; do outro, o agente da Polícia Federal que exercia o papel de censor oficial, em tempos não tão remotos. Era o ano de 1981, e o DCE da Ufal, presidido por Ediberto Ticianeli, retomava os festivais universitários de música. A minha canção de "guerra" (Legião dos Condenados), uma marcha-rancho, já era conhecida dos freqüentadores assíduos das noites de sábado, no auditório da antiga Reitoria. Os versos da discórdia cantavam que o "filho ingrato, cospe o prato/Não canta o Hino Nacional".
-E por que não canta?
-Não canta porque não sabe. É um homem pobre, analfabeto, blá blá blá...
-E não é um protesto?
-De jeito nenhum.


E a música foi liberada por aquele meu ex-colega do curso de Psicologia. Claro que ali ninguém havia enganado ninguém. O constrangido servidor público, a quem encontrei recentemente e que me lembrou o embate, apenas buscava uma desculpa razoável que pudesse apresentar aos seus superiores caso fosse necessário - e não foi.

Quem era dono das melhores artimanhas para driblar a censura, este, sim, chama-se Chico Buarque de Holanda, um grande gozador e unanimidade da MPB (contrariando Nélson Rodrigues, a quem Chico desancou pelo seu elogio a "Carolina"). Abusava dos palavrões nas letras, que, claro, os atentos guardiães da moral e dos bons costumes riscavam com caneta vermelha sem nem pestanejar. As metáforas? Estas seguiam seu legítimo caminho rumo ao público. Foi assim que "Apesar de você" pareceu aos "homens" uma singela canção de amor (veio a ser, depois, censurada. Mas já estava colada nos ouvidos mais atentos).

Menos sorte teve Edu Lobo (para mim, o sucessor de Tom Jobim). Sua música "Casa Forte", instrumental e sem letra, foi vetada porque o título pareceu, aos especialistas, subversivo!! O critério era o humor do dia dos responsáveis pelo Departamento de Censura Federal.

Mas a estupidez não parava por aí. Eles quiseram, nos anos de chumbo, prender Sófocles, o autor de "Antígona", um perigo revolucionário, então. Os agentes da "dura" chegaram ao teatro onde a peça era encenada, com alguns séculos de atraso - e o grego continuou livre e sem ser incomodado no seu túmulo.

Coisas piores fizeram os agentes da lei vigente. Proibiram a filha de seis meses de um médico paulista, acusado de ser comunista, de freqüentar a creche em que estava matriculada, tamanho era o risco de contaminação aos engatinhantes do local.

Do risível ao absurdo - ou ao contrário - era um passo. A exemplo do episódio que ficou conhecido como o "IPM (Inquérito Policial Militar) da Feijoada", este o prato principal do almoço oferecido pelo editor Ênio Silveira ao ex-governador Miguel Arraes, em maio de 1965. Cassado e caçado pela ditadura, Arraes havia passado uma "temporada" em Fernando de Noronha - um paraíso que funcionava como prisão.

O respeitado proprietário da Editora Civilização Brasileira foi um bom anfitrião, que se tornou mais um prisioneiro dos militares por ter recebido em seu apartamento, antes do seu exílio na Argélia, o temido líder de esquerda - bom de povo, mas péssimo orador. O coronel indignado, que arrastou para as masmorras o homem das letras, não se satisfez. Levou junto com ele o que lhe era de "direito": além do dono do apartamento, as duas cozinheiras de Ênio Silveira, e, para completar o grupo subversivo, deu ordem de prisão - cumprida - ao porteiro do "edifício-aparelho".

Conta-se que o feirante que vendeu pé de porco, carne salgada e outros acepipes conseguiu sumir a tempo. Que tempo!

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