terça-feira, 16 de junho de 2009

Crise na Assembléia e Limites Políticos da Sociedade Civil Alagoana



Golbery Lessa, historiador
Foto: José Feitosa

Em fevereiro do presente ano, a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) que abriu a possibilidade do retorno à casa de Tavares Bastos dos deputados estaduais afastados pela Justiça teve o efeito de despertar na sociedade civil maior vigor na busca de novos caminhos para a mobilização referentes à mudança da cultura política local. A postura anterior das várias entidades reunidas no Movimento Contra a Criminalidade e a Corrupção (MSCC) baseava-se no elitismo, num exagero na moderação prática e ideológica (algo fora do lugar num contexto de emergência política e ética) e no excesso de confiança no discurso jurídico (como se este fosse suficiente e o único pertinente). O esperado golpe da atual ilegítima mesa diretora de não instalar os trabalhos legislativos do ano de 2009 no dia marcado para uma significativa manifestação popular foi respondido, brilhantemente, com o contragolpe da ocupação do plenário e a instalação simbólica de uma “Assembléia Legislativa Popular”, contundente recado sobre a possibilidade real de um afastamento irreversível entre os poderes constituídos e a sociedade civil, com ocorreu em 17 de julho de 1997. Contudo, ainda há um logo caminho a percorrer para que os alagoanos encontrem forças suficientes para renovar o Poder Legislativo estadual e as suas práticas políticas. Será necessária principalmente uma profunda autocrítica do campo progressista.
Por quais motivos a sociedade civil não está conseguindo mobilizar-se com eficiência e efetividade contra as presumidas ilegalidades (mesmo respeitando o princípio do contraditório e sem querer julga no lugar da Justiça, temos o direito de dizer que existe uma montanha de indícios) praticadas na Assembléia Legislativa? As limitações políticas e ideológicas da mobilização popular estão expressando as limitações da sociedade civil alagoana na presente etapa de seu desenvolvimento, particularmente dos trabalhadores sindicalizados mais atuantes e dos setores empresariais “não-canavieiros”. Essas limitações têm relação com a configuração particular das classes sociais no Estado e a história das idéias e das práticas políticas locais. Deixemos os setores empresariais referidos para um artigo futuro e analisemos o outro sujeito social citado.
Os trabalhadores até agora mobilizados estão reunidos principalmente em entidade de funcionários públicos municipais, estaduais e federais, além de estarem nos movimentos de luta pela terra, cujos membros formam a massa disposta às ações mais contundentes e o grosso das passeatas. Segundo o site do MSCC, o movimento teria sido fundado pelos seguintes sindicatos e entidades: Sindicato dos Policiais Rodoviários (SINDPRF), Sindicato dos Servidores do Judiciário Federal e MPU (SINDJUS), Sindicato dos Urbanitários, Sindicato dos Trabalhadores em Seguridade Social (SINDPREV), Sindicato dos Servidores Públicos de São Miguel dos Campos (SIMESC), Sindicato dos Médicos, Sindicato dos Taxistas, Sindicato dos Trabalhadores em Educação (SINTEAL), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Ordem de Advogado do Brasil – AL. Vê-se que o grosso das entidades fundadoras do movimento é formado de funcionários públicos, principalmente federais, secundados pelos servidores estaduais (urbanitários e trabalhadores na educação). Esse perfil manteve-se inalterado até o presente momento (junho de 2009); basta ver que os “deputados populares” escolhidos simbolicamente durante a ocupação do plenário foram, na maioria, os dirigentes das entidades apontadas e uma minoria de lideranças dos movimentos agrários. O grosso dos trabalhadores do setor privado, a maioria dos trabalhadores da capital e do interior, e suas entidades representativas estiveram ausentes; essa ausência tem tido um impacto decisivo nos rumos práticos e ideológicos do movimento. Por quê? Porque sem diálogo e aliança com os trabalhadores do setor privado o sindicalismo dos funcionários públicos tende a projetar alguns limites estruturais de sua natureza nas práticas e na subjetividade dos movimentos políticos dos quais participa.
Os principais limites do sindicalismo no serviço público são os seguintes: 1) a estabilidade no emprego, arma necessária contra o clientelismo, modifica bastante o significado da greve e de outros atos de rebeldia da força de trabalho; a greve torna-se burocrática e destituída do caráter épico que tem no setor privado, onde existe a angustia pela possibilidade de perder o emprego, o ódio natural contra os pelegos, a vigilância radical dos acordos feitos pelas lideranças, entre outros dilemas; o caráter rotineiro da greve no serviço público cria espaço para um sindicalismo marcado pela moderação, o desleixo com o debate fundamentado de questões mais amplas e a supervalorização política das ações judiciais; essas circunstâncias geram a perpetuação das mesmas lideranças, dificuldade a renovação dos quadros sindicais; 2) a significativa quantidade de servidores que entraram sem concurso público (antes de 1988) por terem “costas quentes” e o grande número de cargos de confiança acabam cooptando para o “patrão” (o governo) ou para as correntes de clientelismo relevante parte das lideranças existentes na categoria, o que dificulta a organização pela base e as mobilizações por bandeiras políticas concretas; e 3) o servidor tem o estado como patrão e não a diretoria de uma empresa privada, o que termina gerando uma identidade entre mobilização sindical e mobilização política, ou seja, os servidores se colocam contra o governo de plantão com mais facilidade do que os trabalhadores privados e parecem se politizar muito mais rapidamente do que estes; contudo, ocorre de fato mais freqüentemente uma “politicização” do que uma politização, isto é, os servidores tendem a limitar os temas políticos a aspectos superficiais e a prognosticar o moralismo como remédio para todos os males, tendo grande dificuldade de perceber os embates econômicos decisivos entre as forças sociais e econômicas que estão na base do universo político; essa dificuldade de perceber os verdadeiros interesses em jogo é ainda reforçada pelo fato de que o próprio exercício da função pública, que objetiva regular os conflitos sociais, gerar a ilusão em quem a exerce de estar acima das classes , de ser um juiz imparcial dos interesses em luta.
Em 1950, os trabalhadores da indústria eram 44% da força de trabalho urbana de Alagoas e os funcionários públicos tinham uma participação muito menor, em torno de 10%. A expansão das atividades estatais iniciada no Estado Novo, continuada na época do “milagre brasileiro” e reforçada pela Constituição Federal de 1988 inverteu esse quadro: em 2000, os funcionários públicos passaram a ser 25% dos assalariados urbanos e os operários industriais foram reduzidos para 18%. Os servidores agora recebem quase 70% da renda do trabalho no Estado e têm em média a metade da participação entre a população que recebe de 3, 5, 10 e 20 salários mínimos. O setor privado passou a ser formado pelos comerciários (13% em 1950 do emprego urbano, 21% em 2000) e pelos prestadores de serviço (24% em 1950 do emprego urbano, 23% em 2000) na maioria empregada em empresas pequenas, mas não apenas nelas. Essas modificações na configuração da força de trabalho acompanharam as modificações no PIB, que passou a ser formado, a partir de meados dos anos 1980, majoritariamente pelo setor de serviços, com forte presença neste das atividades do setor público (administração, saúde, segurança e Justiça), numa porcentagem só alcançada em outros estados menos desenvolvidos do país.
Esta nova realidade quantitativa criou as possibilidades de um mundo diferente na representação sindical e política dos trabalhadores. As lutas sindicais do passado, baseadas nos trabalhadores do setor privado e lideradas pelos comunistas e trabalhistas deram lugar, notadamente a partir de meados dos anos 1980, a lutas nucleadas pelos funcionários públicos e orientadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Uma minoria entre os trabalhadores urbanos protegida pela estabilidade no emprego, lotada em entidades com centenas de indivíduos e possuidora de 70 % da massa salarial, passou a hegemonizar o sindicalismo e a representação política dos assalariados, deixando na penumbra uma maioria formada por operários industriais dispersos nas duas dezenas de usinas, na construção civil e em outros ramos industriais de menor expressão demográfica (os químicos são poucos, mas produzem 20% do PIB alagoano), bem como uma grande quantidade de comerciários espalhados em milhares de pequenas lojas (com exceção dos supermercados) e de assalariados do setor de serviços pessoais e a empresas. Criaram-se, assim, as condições para a existência de duas culturas políticas específicas, com lideranças, idéias e lógicas distintas e, em várias dimensões, antagônicas. Os trabalhadores do setor privado passaram a agir e pensar a política fora dos marcos clássicos do sindicalismo de esquerda, já que foram praticamente abandonados - ou incompreendidos - por esta corrente ideológica, convergindo apenas em alguns momentos com as idéias e as ações dos funcionários.
De modo geral, os trabalhadores alagoanos do setor privado são mais difíceis de organizar devido à existência de um substancial exército laboral de reserva no Estado e da inexistência de estabilidade no emprego, entre outras variáveis. Além destas, cada uma das categorias desses trabalhadores possui dificuldades específicas. Os operários das usinas têm dificuldade de se organizar porque os seus direitos de associação e expressão são negados na prática pelos empresários e outras instâncias de poder (são mais vigiados porque podem parar o coração econômico da oligarquia canavieira); os trabalhadores da construção civil, apesar de estarem concentrados em poucas grandes empresas, têm a desvantagem de conviverem com uma intensa dispersão das equipes ao final de cada obra; os comerciários na maioria estão dispersos em milhares de pequenas lojas, onde o paternalismo patronal e a vigilância se exercem com o mesmo empenho, com a exceção dos grandes supermercados. Algo análogo ocorre com as trabalhadoras domésticas (60 mil em Alagoas) e os assalariados do setor de serviços a empresas. Apesar disso tudo, esses assalariados teriam uma chance de constituírem sindicatos mais fortes se o imaginário político alagoano não estivesse tomado desde meados dos anos 1980 por idéias feitas à imagem e semelhança dos limites do sindicalismo dos servidores públicos, sindicalismo que nega a importância política do trabalhador do setor privado (visto como um lumpemproletariado que vende o seu voto e atrapalha o progresso das idéias progressistas), por mais que esta negação não apareça formulada com sinceridade.
O dia 17 de Julho de 1997, jornada de protesto liderada pelos servidores públicos estaduais que motivou a renúncia do então governador Divaldo Suruagy, ponto culminante de uma crise econômica que se expressava, entre outras coisas, no não pagamento do funcionalismo, foi emblemático dos limites e possibilidades do sindicalismo alagoano contemporâneo. Sua análise ensina sobre as atuais dificuldades de mobilização. Os funcionários públicos estaduais, com o apoio de toda a sociedade civil, derrubaram o mesmo governador no qual tinham votado dois anos e meio antes; o tinham escolhido na esperança de que Suruagy trouxesse de novo uma época áurea para os vencimentos dos servidores. Só que o governador, que até aquele momento era um verdadeiro mito, não foi capaz de realizar a tarefa impossível de trazer de volta a conjuntura de seus primeiros mandatos, nas quais havia dinheiro suficiente para obras públicas e expansão do gasto com pessoal. O “acordo dos usineiros” havia acabado de debilitar os cofres públicos e uma série de circunstâncias legais e econômicas impediram rolagem da dívida do Estado. Diante do acúmulo de meses sem pagamento, os servidores transformaram o apoio em crítica, a simpatia em ódio.
O verdadeiro levante armado de 17 de Julho de 1997 foi uma saída democrática e popular para uma quadra histórica na qual as classes dominantes caíram na inércia porque não tinham coesão nem projeto político definido, não possuíam lideranças públicas com iniciativa e só assistiam sua hegemonia deteriorar-se progressivamente. A partir de um determinado momento, a quase totalidade da população apoiava, mesmo que não ativamente, a vanguarda de sindicatos e associações de servidores públicos que encetou vários tipos de protestos e formas de mobilização até conseguir a destituição do governador, tendo realizado a tarefa aparentemente impossível de impor a sua vontade à maioria folgada que Suruagy possuía na Assembléia Legislativa. Esse movimento político tão poderoso não foi, por outro lado, capaz de aprofundar significativamente o seu diagnóstico e os seus objetivos; virou-se para uma saída moderada demais e muito imprudente para quem havia sofrido tanto com as aventuras do status quo: apoiou uma candidatura (Ronaldo Lessa) sem um compromisso claro com mudanças estruturais e se absteve de eleger uma bancada de deputados progressistas ao lançar a principal liderança do movimento (Heloísa Helena) para o senado federal. Ronaldo Lessa fez dois governos de centro-direita, repetindo no básico os projetos políticos tradicionais (é sempre possível encontrar um roda-pé progressista em qualquer governo e seria possível encontrá-lo no de Lessa, mas isso não muda o seu rumo político essencial). Heloísa transformou-se em liderança nacional e o Brasil a furtou de Alagoas (sua volta com vereadora em 2009 parece ser a forma que a história encontrou para reparar esse erro). Após 12 anos do dia 17 de Julho de 1997, a esquerda alagoana demonstra ter perdido o rumo ideológico e os votos, tornando-se uma força temporariamente residual; o poderoso movimento popular pariu um rato porque expressou a força e os limites de sua principal base social: os servidores públicos isolados dos trabalhadores do setor privado. Muita moral, revolta e capacidade de luta, mas diagnóstico superficial e idéias tímidas.
A fragilidade relativa da atual mobilização da sociedade civil alagoana contra o status quo político na Assembléia Legislativa se explica, entre outras variáveis, pelos limites ideológicos e políticos da base social da vanguarda sindical mobilizada, que se expressa na subjetividade e na ação dessa vanguarda. Seu discurso tem sido abstrato, fragmentado, legalista e eivado de um moralismo empobrecedor do debate. Diz que o sistema político é corrupto porque as principais lideranças são corruptas (uma afirmação quase tautológica) e esquece-se de explicar quais variáveis permitem que os corruptos cheguem ao poder e permaneçam nele.
Os seguintes fenômenos estruturais que determinam a corrupção e a crise no Legislativo são esquecidos: 1) a universalização da aposentadoria rural, a estruturação dos sistemas nacionais de financiamento da saúde e da educação, o Bolsa Família e os programas oficiais de crédito aos pequenos agricultores, entre outros fenômenos análogos, bem como a diminuição radical do número dos moradores das fazendas (a partir de meados dos anos 1980) provocaram mudanças profundas na situação do eleitorado, dando-lhe mais independência das redes de clientelismo e tornando muito mais cara a manutenção das chamadas “bases eleitorais”; 2) a participação majoritária do setor de serviços no PIB, a partir dos anos 1980, determinou o aumento do nível de urbanização do eleitorado e o fortalecimento de novos atores, como o funcionalismo público, os comerciários e os prestadores de serviço a empresas, robustecendo a sociedade civil e o peso da opinião pública no resultado das eleições (na verdade, essa urbanização do voto constituiu-se numa “reurbanização”, já que nos anos 1950 a impossibilidade do voto do analfabeto fizera o voto urbano ter uma importância decisiva, representando por volta de 40% do eleitorado), fatos que “inflacionaram” ainda mais o voto rural e tornaram o voto citadino muito caro para ser “comprado” sem um rede dispendiosa de clientelismo; e 3) o fortalecimento do poder político da União em relação aos Estados a partir de 1995 (por meio do Plano Real e uma série de medidas implementadas pelos governos de Fernando Henrique Cardoso: Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Kandir, Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados, vinculação de recursos para as áreas da educação básica [FUNDEF] e da saúde [Emenda Constitucional n° 29], etc.) diminuiu as arbitrariedades nas contas dos Estados que eram aproveitadas politicamente pelas oligarquias; esse desequilíbrio do pacto federativo, apesar de suas intenções neoliberais, teve, em Alagoas, um impacto positivo no que toca ao fortalecimento do espaço democrático ao abrir espaço para a valorização da polícia federal e do Ministério Público, agora reestruturados por constantes concursos e melhorias salariais.
As presumidas irregularidades no uso do dinheiro público na Assembléia Legislativa explicam-se, em nossa opinião, pelo conflito entre as novas circunstâncias hostis ao antigo status quo político e sua disposição de resistir às mudanças democratizantes que a nova realidade impõe. A inflação dos gastos nas campanhas políticas alagoanas originou-se do aumento radical da monetarização dos laços políticos nas cadeias de clientelismo e dos gastos com o marketing necessário para amealhar o voto de um eleitor mais moderno e independente. Em decorrência, diferente do passado, no qual o mandonismo político se realizava com acordos a fio de bigode, o poder político passou a ser determinado, para aqueles que não desejaram trilhar o saudável caminho da disputa democrática, cada vez mais pela capacidade de amealhar dinheiro sonante em quantidades cada vez maiores, daí a busca de acesso irregular aos fundos públicos. A corrupção no sistema político alagoano contemporâneo não é, portanto, expressão da onipotência de um grupo de políticos e a pretensa prova de que tudo permanecerá igualmente miserável nessa terra de natureza luxuriante, é a demonstração que uma nova etapa de modernização se aproxima e de que a sociedade civil precisa superar os seus limites para atenuar as dores do parto e moldar o futuro de maneira mais generosa.

Maceió-AL, junho de 2009.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O casaco de Marx


Uma vez, em um seminário, a filósofa Marilena Chaui chamou a atenção sobre a vida que há por detrás das grandes obras, os imensos desprendimentos de êxtase e sacrifício que a criação de um novo conhecimento para a humanidade exige. A leitura do pequeno e belo livro “O casaco de Marx. Roupas, memória e dor”, de Peter Stallybras (Belo Horizonte, Editora Autêntica), traz de volta este pensamento. O livro nos coloca dentro do lar dos Marx nos anos 1850 quando do exílio em Londres. Como relembra, seu biógrafo David Mclellan, a partir de um relatório de um espião prussiano, Marx vivia no outono de 1852 em um dos piores quarteirões de Londres. Submetidos às mais agudas carências, os Marx vão nestes anos se valer recorrentemente da penhora dos objetos familiares e de uso pessoal, uma prática generalizada de sobrevivência na classe operária inglesa da época. Em certas conjunturas mais difíceis, a prática do penhor nos bairros operários tinha um ciclo semanal: usa-se a roupa no domingo e se penhorava-a na segunda-feira para retomá-la no fim de semana seguinte. Nos casamentos operários, o anel era valorizado pois este era um item provavelmente penhorável e era comum as lojas de penhores serem cenários de despedidas dramáticas de objetos assim tão íntimos e estimados.Como nos conta o autor: “Em 1850, Jenny Marx penhorou objetos de prata em Francfurt e vendeu móveis em Colônia. Em 1852, Marx penhorou seu casaco de inverno para comprar papel para poder continuar a escrever. Em 1853, “tantos de nossos objetos absolutamente essenciais tinham feito o seu trajeto para a loja de penhores e a família tinha ficado tão pobre que, nos últimos dez dias, não se encontra um centavo em casa.” Em 1856, para financiar a mudança para a nova casa, eles precisaram não apenas de toda a ajuda de Engels, mas também penhorar algumas posses domésticas. Em 1858, em outro período de dramática crise financeira, Jenny Marx penhorou seu xale e, no final do ano, ela está afligida com cartas de cobrança de seus credores e foi forçada a “fazer excursões às lojas de penhores da cidade”. Em abril de 1862, eles deviam vinte libras do aluguel e tiveram que penhorar as roupas das filhas e de Helene Demuth, bem como as suas próprias roupas. Eles as recuperaram mais tarde, na primavera, mas tiveram que penhorá-las, de novo, em junho. Em janeiro do ano seguinte, além de lhes faltar alimentação e carvão, as roupas das filhas foram, outra vez, penhoradas e elas não puderam ir à escola. Em 1866, a família estava, outra vez, em uma situação aflitiva, tendo penhorado tudo que era possível e Marx não podia comprar papel para escrever.”Certo sábado à noite, ao tentar penhorar talheres de prata, Marx foi parar na delegacia: “Noite de sábado, judeu estrangeiro, roupa desordenada, cabelo e barba grosseiramente penteados, bela prata, timbre nobre – evidentemente, uma transação, de fato, bastante suspeita. Assim pensou o dono da loja de penhores a quem Marx se dirigiu. Ele, portanto, deteve Marx, com base em algum pretexto, enquanto chamava a polícia. O policial teve a mesma opinião que o dono da loja de penhores e levou o pobre Marx para a delegacia de polícia. Ali, outra vez, as aparências jogavam fortemente contra ele. ..Assim Marx recebeu a desagradável hospitalidade de uma cela policial enquanto a sua ansiosa família lamentava seu desaparecimento”.Eleanor Marx, a filha, lembra que o pai contava uma fábula maravilhosa de um tipo chamado Hans Rockle, dono de uma loja de brinquedos, que, por não conseguir pagar suas contas, tinha que se desfazer de seus brinquedos mais fantásticos. Os brinquedos, na fábula de Marx, após muitas aventuras, retornavam sempre à loja de Hans Rockle. Os pais de Eleanor tinham visto antes dela nascer oficiais de justiça entrar em sua casa e levar tudo, “inclusive os melhores brinquedos que pertenciam às filhas”, Jenny e Laura, que ficaram em lágrimas por causa da perda. Quando o casaco de Marx estava na loja de penhores durante o inverno, ele não podia ir ao Museu Britânico. Sem ir ao Museu Britânico, ele não podia realizar a pesquisa para “O Capital”. Todo o primeiro capítulo de “O capital” traça as migrações de um casaco, visto como uma mercadoria, no interior do mercado capitalista. Coincidência? “Penhorar um objeto é desnudá-lo da memória”, escreve o autor, “pois somente um objeto desnudado de sua particularidade histórica pode se novamente se tornar uma mercadoria e um valor de troca”. E, ao final, conclui: “Tornou-se um clichê dizer que nós não devemos tratar as pessoas como coisas. Mas trata-se de um clichê equivocado. O que fizemos com as coisas para devotar-lhes tal desprezo? E quem pode se permitir ter este desprezo? Por que os prisioneiros são despojados de suas roupas a não ser para que se despojem de si mesmos? Marx, tendo um controle precário sobre os materiais de sua autoconstrução, sabia qual era o valor de seu próprio casaco”.


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