quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Frevo

Resultado de um mapeamento cultural do Brasil realizado por Aluízio Falcão e Marcus Pereira no início dos anos de 1970, foram lançados, já em 1975, quatro coleções de discos com as gravações das principais manifestações de cada região do país. Segundo Aluízio Falcão, “todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes”.

Após a gravação da coleção Música Popular do Nordeste, Falcão pediu a cinco destacados intelectuais da região que escrevessem sobre os principais gêneros documentados. Já postamos o texto de Ariano Suassuna, sobre cantorias de viola e literatura de cordel, e agora publicamos o de Paulo Cavalcanti sobre o frevo.
Pela importância dos temas e como forma de lembrar a boa ideia que tiveram Aluízio Falcão e Marcus Pereira, vamos reproduzir todos eles, em outras postagens.  

Os próximos serão os de Renato Carneiro Campos sobre cocos e bandas de pífanos, Euricledes Formiga sobre as emboladas, Jaime Diniz com as danças populares, especialmente as cirandas, e Hermilo Borba Filho sobre o bumba-meu-boi.

Frevo

PAULO CAVALCANTI

O FREVO – música e forma de dança – é característico de Pernambuco. Multidões em reboliço no quente aperto das ruas e dos salões de baile, nos dias de Momo, são os agentes de sua manifestação, o Carnaval, tornando-se quase anódino fora dele.

As raízes do frevo estão na modinha, no dobrado militar, na quadrilha, na polca e no maxixe, numa seqüência de transformações que o poder de criação do povo, da canalha da rua, da ralé, do pé rapado ou da massa adaptou à sua própria índole, como forma de extravasar os seus mais ardentes anseios de liberdade.

No início, o frevo era somente a música – o desfile marcial pelas ruas do Recife, arrastando consigo, nos becos e travessas estreitas e sombrias da velha capital pernambucana, o fervor de multidões arrebatadas.

A coreografia do frevo – o passo – nasceu da impetuosidade mesma da música, dinâmica, fogosa, agitada. "As duas coisas se foram inspirando uma na outra – e completaram-se", conforme observou Valdemar de Oliveira, mestre na matéria.

A partir do momento em que música e forma de dança se identificaram, num processo de interação da mais pura criatividade popular, o Carnaval de Pernambuco começou a ganhar as suas peculiaridades, fanfarras e bandas marciais desfilando nas ruas, seguidas da massa de foliões se requebrando na frevança das marchas que, dia a dia, se distanciavam de suas matrizes ortodoxas, para assimilar e plasmar, por fim, no ritmo e no desenvolvimento melódico, a cor inconfundível de hoje.

No princípio, o frevo não tinha letra. E nem podia tê-la, com o imprevisto de seus andamentos, os altos e baixos da pauta musical, os trechos curtos de límpidas e corridas melodias, de mistura com as paradas instantâneas, os freios, as síncopes, formando um conjunto, uma tessitura de sons e compassos que a estridência dos trombones, clarins, pistons, clarinetes e outros instrumentos metálicos ia forjando para amoldar à forma de dança, o passo, o conteúdo da música.

Foi da improvisação criadora desses três elementos – a música, a forma de interpretá-la e o modo de dançá-la, no passo – que resultou o frevo, de genuínas fontes populares, nas quais a erudição jamais teve campo, em qualquer dos tríplices fatores.

Na opinião de Rui Duarte, apaixonado estudioso do problema, as modalidades do frevo hoje existentes – o frevo-canção e o frevo-de-bloco – são descaracterizações da música pernambucana. "Foram uns jornalistas e intelectuais que entenderam que frevo tinha de apresentar uma letra, quando a música, pela sua própria natureza, não foi feita para ter a parte de canto".

Pensamos de modo contrário. Qualquer dos gêneros do frevo é legítimo, desde que conserve, como realmente conserva, os tons e ritmos iniludíveis da primitiva marcha-frevo dançada por capoeiras e valentões do Recife nos fins do século passado, quando as condições histórico-sociais permitiam um clima de democratização de raças e classes nos dias de carnaval.

Depois, com a divulgação e popularização do rádio e das vitrolas portáteis, a marchinha e o samba carioca entraram a concorrer com o frevo pernambucano, sem letra. Foi o tempo em que, por outro lado, o passo deixou de ser visto como dança bastarda, para invadir os salões dos clubes sociais do Recife, quase fechados, da velha aristocracia da cana de açúcar e de seus remanescentes.

Se, nas ruas, entre um frevo e outro, ao indispensável descanso das orquestras e fanfarras arquejantes, o povo também precisando enxugar a camisa, já começava a botar letra na marcação rítmica dos bombos e tarós, cantando, em coro, o "Tão pequeno, chapéu tão grande! Tão pequeno, chapéu tão grande!" como, nos dias de hoje, nas mesmas circunstâncias, os foliões dos clubes sociais imitam os surdos compassos dos instrumentos de percussão, ao estribilho "Ou dá ou desce! Ou dá ou desce! Ou dá ou desce!" – torna-se evidente que o frevo com letra, ou seja, o frevo-canção, resultou de fontes espontâneas, sobretudo dá necessidade de fazer sobreviver a música pernambucana na concorrência das melodias carnavalescas. Mesmo porque, nas ruas, o frevo era eminentemente viril, masculino, somente homem agüentando o repuxo e a efervescência do passo, enquanto nos salões, por sua natureza, a dança não podia apresentar a mesma impetuosidade de ação coletiva, espraiando.

Com as damas da sociedade e as mocinhas tentando esquentar os salões do Palacete Azul e do Clube Internacional, nos velhos carnavais das primeiras décadas do presente século, o frevo efeminou-se, sem nenhum sentido pejorativo, nascendo então o frevo cantado, o frevo-canção, tanto para ajustar o passo a homens e mulheres, quanto, paralelamente, no sentido de estabelecer uma confrontação emulatória com a marchinha e o samba do Rio de Janeiro. É claro que nisso tudo entrava um pouco de preconceito de classe: a velha aristocracia procurando fugir à mistura com o populacho das ruas fazendo o seu Carnaval próprio, longe dos empurrões, das inconveniências da mão-boba de um ou outro folião mais atrevido.

Enfim, fatores de ordem econômica e social contribuíram para criar o frevo-canção, que é o frevo ortodoxo, na introdução, e um pouco da marchinha carioca, no andamento musical e na elaboração da letra, com seus estribilhos, embora mais ingênuos que maliciosos.

O mesmo fenômeno ocorrera, antes, com o bloco e a marcha-bloco, outras facetas dos clubes e do frevo de rua. Entretanto, os capoeiras, os valentões e o mulherio que não tinham nada a perder, faziam a onda, acompanhando os cordões dos clubes formados por trabalhadores da orla marítima, carvoeiros, varredores da Prefeitura, carregadores e outras camadas do operariado daqueles tempos em torno de organizações cujos nomes pressupunham o caráter másculo de sua composição. Toureiros, Pás de Carvão, Lenhadores, Ciscadores, Ferreiros, Talhadores, Suineiros etc.

A rapaziada – jovens e moças de subúrbios recifenses – instituíam seus blocos, com orquestras de pau e corda. Desfilavam pela capital dezenas e dezenas de violões, bandolins, cavaquinhos, repinicando a introdução do frevo, precedida do apito disciplinador da coreografia coletiva para, em seguida, desaguar na melodia saudosa, cantada por corais de vozes femininas. Os blocos compunham-se de agrupamentos familiares, pais e mães, cuidadosas vigiando as filhas, as meninas-moças, namorados ao lado das namoradas, tudo sob a garantia de poderosos cordões de isolamento que afastavam, às vezes brutalmente, os estranhos e penetras que se iam avolumando rua a fora no itinerário dos blocos, estes sim, de nomes suaves e românticos, muito ao contrário das denominações machistas dos clubes: Bloco das Flores, Após Fum, Amante das Flores, Batutas da Boa-Vista, Batutas de São José, Inocentes do Rosarinho, Madeiras do Rosarinho e Pirilampos.

Há uns trinta e tantos anos os carnavais do Recife chegaram a ter a participação, durante o dia, de blocos infantis, lindas manifestações de colorido e juvenilidade que o rigorismo das autoridades policiais e judiciárias cancelou sob o absurdo fundamento de proteção aos menores. Quem sabe se desses blocos, de meninos e meninas, não teria saído nova modalidade de frevo, com música e passo próprios da idade? Frustrou-se, dessa maneira, mais uma fonte de criação popular, fenecendo na formação das crianças, o gosto pela música e pelos folguedos carnavalescos da melhor tradição pernambucana.

Fonte: Estudos Avançados, vol.11 n° 29 São Paulo Jan./Apr. 1997

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